Quem diz que o Rio de Janeiro não é cenário para uma
história de terror, jamais passou pelo Centro da cidade a noite.
Quando a maior parte das pessoas já se recolheram em suas
casas e estão seguras por trás das portas trancadas, é como se a cortina criada
pela luz do sol fosse retirada e toda a alegria da “cidade maravilhosa” se
transmutasse em algo sensual e voraz.
Todos os seus desejos podem ser realizados, se você souber
onde ir e tiver condições de pagar o preço, nem sempre monetário. Todos tem fome
de algo e embora o carioca pareça se alimentar de sol, é sobre o manto das
trevas, que se revelam suas verdadeiras pulsões.
Por isso a cidade atrai toda a espécie de seres esquecidos,
que se divertem ao realizar e distorcer sonhos.
O Rio de Janeiro é como um buffet coma tudo que puder, de
beira de estrada. Tão barato, que se torna tentador, embora você saiba que não
vai encontrar nada de realmente saboroso para saciar seu apetite.
Saulo jogou a ponta de cigarro no chão sujo, assistindo-a
rolar até um bueiro entupido, de onde saiu uma barata, que esmagou com a ponta
de seu sapato social preto, perfeitamente engraxado.
Olhou para seu reflexo em uma vitrine próxima e sorriu
satisfeito com a própria aparência. O terno cinza chumbo, bem cortado, delineava
bem o ombro largo e insinuava o peitoral definido por baixo da blusa
impecavelmente branca.
A noite estava quente e úmida, mas aquilo não o incomodava.
Ajeitou o chapéu panamá, fazendo com que a aba criasse uma sombra misteriosa
sobre seus olhos e seguiu, com seus passos tranquilos, até o bar da esquina.
Lá, alguns velhos bebiam cachaça vagabunda e prostitutas faziam ponto,
aproveitando-se da luz do estabelecimento como uma segurança extra.
Elas sabiam que aquilo não faria grande diferença se alguém
quisesse machucá-las, mas a ilusão era reconfortante. Humanos gostam de criar
ilusões para lidar com suas inseguranças.
A noite, quando o cheiro de decadência parecia se tornar
mais forte e viciante, era quando mais se apegavam às ilusões.
Em um canto do bar, sentada em um banco alto junto ao balcão
gorduroso, uma jovem parecia destoar do local, talvez nem tivesse idade para
estar ali. Usava roupas muito largas, que pouco favoreciam as curvas pequenas
do corpo magro. Tinha os cabelos crespos trançados e sua pele cor de café
brilhava devido ao suor.
Estava encolhida sobre o banco, dando goladas nervosas na
cerveja gelada, como se não gostasse do sabor, mais quisesse de forçar a
continuar bebendo.
Quando ele se sentou ao seu lado, o olhou assustada e depois
tentou ignorar sua presença.
- O que faz aqui sozinha? – Saulo perguntou em um tom baixo,
abrindo um sorriso que deixava a mostra todos os seus dentes brancos e
alinhados.
A garota franziu a testa, até quase unir suas sobrancelhas,
fazendo com que a pele em volta de um piercing que usava repuxasse de
modo desagradável e respondeu de forma grosseira:
- Eu não sou puta, falou? Me deixa em paz!
Sentiu-se desequilibrar por um instante, diante da reação
inesperada. Então forçou uma risada que deveria ser simpática, recusando-se a
recuar.
- Me desculpe, eu jamais pensei que fosse, não tive a
intensão de ofendê-la e...
- Cara, não fode! Por qual outro motivo um playboy metido a
hipster igual a você viria falar comigo? Se ‘ta querendo uma trepada fácil,
pode desistir de tentar comigo.
A garota falou, olhando-o pelo canto do olho, enquanto uma
das mãos apertava firmemente a garrafa de cerveja, em uma postura defensiva.
Saulo teve vontade de sorrir, quando o cheiro de suor trouxe
o sabor amargo de medo a sua língua. Ela tentava esconder com agressividade,
mas estava assustada.
- Olhe, você entendeu tudo errado. – Recomeçou, de volta ao
tom gentil. – Não vim falar com você com nenhuma segunda intensão, apenas
fiquei curioso porque não parece combinar com este lugar.
- E o que você tem a ver com isso? – Perguntou, ainda
desconfiada, mas baixando um pouco a guarda.
Sorriu gentilmente, erguendo um pouco a aba do chapéu e
fazendo com que seus olhos verdes faiscantes olhassem diretamente os dela.
- Nada, na verdade. Mas é que sou escritor e você pareceu
interessante, então quis ouvir sua história, se você quiser me contar, claro.
Suas palavras pareceram desarmar a jovem, que passou a
olhá-lo como se fosse louco, mas não uma ameaça.
- Desde quando escritores se vestem assim?
- Escritores não podem se vestir bem?
- Tu não ‘ta bem-vestido, só maluco pra usar terno nesse
calor da porra.
- O calor não me incomoda.
- Maluco. – Repetiu, com um humor agressivo.
O moreno expandiu seu sorriso charmoso, sinalizando ao homem
atrás do balcão, que também lhe trouxesse uma cerveja.
- Agora que já sabemos de mim, me fale de você. – Disse,
colocando uma das mãos sobre a dela.
Imediatamente, a garota ficou mais relaxada e com um sorriso
macio, começou a falar.
Se chamava Katye, era a mais velha de uma família de sete
filhos, e cansada de suportar os assédios do atual marido de sua mãe, saiu de
casa para viver com um namorado aos 16 anos.
Eles viveram felizes por algum tempo, até que o homem
decidiu que queria ter filhos e ela se recusava a engravidar, então começaram
as brigas. Até que, naquela noite, ele a agredira com um soco na barriga,
gritando que garantiria que jamais pudesse ter filhos. Então ela saiu de casa
correndo e vagou até chegar a aquele bar.
Katye contou a história como se falasse de algo corriqueiro,
como o clima, com um sorriso frouxo nos lábios grossos, entorpecida. Passou
pela sua mente que não havia bebido o suficiente para ficar naquele estado, mas
o pensamento sumiu tão rápido quanto veio, sugado por uma névoa cor-de-rosa,
que a colocou em um estado de tranquilidade que nunca antes sentira.
Saulo manteve o sorriso gentil enquanto ouvia toda a
história com atenção. Sentia o estômago revirar, constatando que ela era mais
uma das pessoas que aquela sociedade tornara incapaz de amar. Era repulsivo.
Sentindo uma fome muito mais profunda ou sinistra do que
qualquer ser humano seria capaz, a convidou para acompanhá-lo até um motel
próximo e a mulher aceitou, sem qualquer hesitação, os olhos vítreos devido ao êxtase.
Alugou um quarto caro, em um motel que gostava de se fingir
elegante, embora não passasse de uma espelunca. As paredes cor de creme eram
encardidas, as molduras dos espelhos e a cabeceira tinham detalhes em dourado
que estavam descascando, revelando o plástico preto por baixo.
A garota parecia estranhamente adequada ao ambiente, ela
tinha certa preciosidade que não combinava com sua triste história de vida ou
com o lugar que a encontrara, mas durante tanto tempo ficara exposta a sujeira
e sem cuidados, que perdeu seu brilho.
Levou-a até o banheiro da suíte e a fez se despir, enquanto
enchia a banheira amarelada. A pele escura se arrepiou lindamente em contato
com a água gelada, sem que, no entanto, a jovem demonstrasse qualquer
desconforto.
Era uma banheira grande o suficiente para caber dois
adultos, se bem colados, então ela não teve problemas em se alinhar com as
pernas dobradas, fazendo com que a água chegasse a altura de seu colo.
Saulo acariciou sua nuca com a ponta dos dedos, bem onde as últimas
tranças tinham seu início e ela sorriu docemente, suspirando. Ele continuou
afundando a mão nas tranças, sentindo a textura agradável dos fios e Katye
semicerrou os olhos e entre abriu os lábios, entregue.
Prendendo os dedos na nuca, como quem puxa a amada para um
beijo, o moreno começou a forçar a cabeça da jovem para trás. O corpo
deslizando sem resistência ao seu toque, afundando cada vez mais na água.
Logo, toda a cabeça da jovem estava submersa, com a mão dele
mantendo-se firmemente presa a nuca. Entorpecido, o corpo dela se contorceu
fazendo vazar água pela borda da banheira, sem forças para realmente resistir.
Saulo assistiu fascinado enquanto o ar deixava os pulmões.
As mãos dela se prendendo nas laterais de seu terno, que a essa altura encontrava-se
encharcado, como uma amante sedenta pelo toque de seu pretendente.
Assistiu os olhos castanhos se arregalarem, enquanto o corpo
tentava em vão respirar, os lábios se entreabrindo e deixando a água invadir os
pulmões em uma expressão que remetia ao mais sublime dos orgasmos.
Por um instante, viu a razão brilhar no fundo dos olhos
vidrados, o desejo de viver dela quebrando seu encanto naquele último esforço
de se manter viva, mas já era tarde demais e logo em seguida os olhos
tornaram-se vazios, enquanto a vida a abandonava.
As mãos soltaram sua roupa de forma macia, um braço
afundando na água, enquanto o outro pendia solto para fora da banheira.
Olhando o corpo sem vida, Saulo sorriu, insatisfeito, a fome
aplacada, mas sem que houvesse real satisfação do apetite.
Pegou o chapéu panamá e o colocou na beirada da banheira, a
única marca que deixaria para quando encontrassem o corpo. Então se virou para
partir, sem qualquer consideração maior do que alguém daria a um prato vazio,
deixado em uma praça de alimentação.
Quando saiu do quarto, seu terno estava novamente impecável
e um novo chapéu protegia sua cabeça.
Saiu do hotel sem chamar qualquer atenção, sentindo uma
queimação similar a uma indigestão no fundo da garganta, enquanto a irritação
crescia em seu interior.
Aquela não era sua natureza, ele não existia para matar.
Seus ancestrais ficariam envergonhados de suas atitudes, pois seu verdadeiro
alimento era a paixão e o prazer.
Houve um tempo em que bebia da paixão, viva um amor
verdadeiro em intenso, que durava apenas uma noite e deixava seu fruto,
considerado uma benção de saúde e beleza.
Aquela
sociedade destruíra tais sentimentos, demonizando seus filhos, fomentando uma
gula insaciável nos seres humanos, tudo passou a girar em torno de poder e
lascívia, endurecendo corações que tornavam-se mais e mais incapazes de sentir.
Destruíram a paixão, bem como os rios e lagos em que gostara
de habitar, corromperam as emoções, tal qual poluíram o meio ambiente. O que
fazia agora era sua vingança, onde antes deixara alegria e fartura, agora
espalhava a desgraçada, tal qual fizeram com ele.
Estava parado na porta do motel, fumando um cigarro enquanto
refletia sobre isso, quando um táxi parou. O taxista sorriu simpático, com os
olhos percorrendo seu corpo de forma que talvez pensasse ser discreta, quando
ofereceu uma “corrida”.
Saulo analisou a figura do homem, mesmo dentro do carro dava
para perceber que era alto, passando a pouco dos 40 anos, com a pele bem queimada
de sol, cabelos grisalhos bem cortados e uma barriga média, que criava uma
elevação da camisa social puída.
Abriu um sorriso sedutor, enquanto se acomodava no banco de
carona.
O
Rio de Janeiro é como um buffet coma tudo que puder, de beira de estrada. Tão
barato, que se torna tentador, embora você saiba que não vai encontrar nada de
realmente saboroso para saciar seu apetite. Mas incapaz se satisfazer, estava
sempre com fome.
Fim.
Ola, leitores!
Finalmente o blog esta de volta e teremos mais contos fresquinhos!
Além de várias novidades, para ficar por dentro de todas elas, não deixem de seguir minha nova página no Facebook: https://www.facebook.com/IrineCSyrogiannisescritora/
Beijos!
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