quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Purgatório Gourmet.



         Quem diz que o Rio de Janeiro não é cenário para uma história de terror, jamais passou pelo Centro da cidade a noite.
         Quando a maior parte das pessoas já se recolheram em suas casas e estão seguras por trás das portas trancadas, é como se a cortina criada pela luz do sol fosse retirada e toda a alegria da “cidade maravilhosa” se transmutasse em algo sensual e voraz.
         Todos os seus desejos podem ser realizados, se você souber onde ir e tiver condições de pagar o preço, nem sempre monetário. Todos tem fome de algo e embora o carioca pareça se alimentar de sol, é sobre o manto das trevas, que se revelam suas verdadeiras pulsões.
         Por isso a cidade atrai toda a espécie de seres esquecidos, que se divertem ao realizar e distorcer sonhos.
         O Rio de Janeiro é como um buffet coma tudo que puder, de beira de estrada. Tão barato, que se torna tentador, embora você saiba que não vai encontrar nada de realmente saboroso para saciar seu apetite.
         Saulo jogou a ponta de cigarro no chão sujo, assistindo-a rolar até um bueiro entupido, de onde saiu uma barata, que esmagou com a ponta de seu sapato social preto, perfeitamente engraxado.
         Olhou para seu reflexo em uma vitrine próxima e sorriu satisfeito com a própria aparência. O terno cinza chumbo, bem cortado, delineava bem o ombro largo e insinuava o peitoral definido por baixo da blusa impecavelmente branca.
         A noite estava quente e úmida, mas aquilo não o incomodava. Ajeitou o chapéu panamá, fazendo com que a aba criasse uma sombra misteriosa sobre seus olhos e seguiu, com seus passos tranquilos, até o bar da esquina. Lá, alguns velhos bebiam cachaça vagabunda e prostitutas faziam ponto, aproveitando-se da luz do estabelecimento como uma segurança extra.
         Elas sabiam que aquilo não faria grande diferença se alguém quisesse machucá-las, mas a ilusão era reconfortante. Humanos gostam de criar ilusões para lidar com suas inseguranças.
         A noite, quando o cheiro de decadência parecia se tornar mais forte e viciante, era quando mais se apegavam às ilusões.
         Em um canto do bar, sentada em um banco alto junto ao balcão gorduroso, uma jovem parecia destoar do local, talvez nem tivesse idade para estar ali. Usava roupas muito largas, que pouco favoreciam as curvas pequenas do corpo magro. Tinha os cabelos crespos trançados e sua pele cor de café brilhava devido ao suor.
         Estava encolhida sobre o banco, dando goladas nervosas na cerveja gelada, como se não gostasse do sabor, mais quisesse de forçar a continuar bebendo.
         Quando ele se sentou ao seu lado, o olhou assustada e depois tentou ignorar sua presença.
         - O que faz aqui sozinha? – Saulo perguntou em um tom baixo, abrindo um sorriso que deixava a mostra todos os seus dentes brancos e alinhados.
         A garota franziu a testa, até quase unir suas sobrancelhas, fazendo com que a pele em volta de um piercing que usava repuxasse de modo desagradável e respondeu de forma grosseira:
         - Eu não sou puta, falou? Me deixa em paz!
         Sentiu-se desequilibrar por um instante, diante da reação inesperada. Então forçou uma risada que deveria ser simpática, recusando-se a recuar.
         - Me desculpe, eu jamais pensei que fosse, não tive a intensão de ofendê-la e...
         - Cara, não fode! Por qual outro motivo um playboy metido a hipster igual a você viria falar comigo? Se ‘ta querendo uma trepada fácil, pode desistir de tentar comigo.
         A garota falou, olhando-o pelo canto do olho, enquanto uma das mãos apertava firmemente a garrafa de cerveja, em uma postura defensiva.
         Saulo teve vontade de sorrir, quando o cheiro de suor trouxe o sabor amargo de medo a sua língua. Ela tentava esconder com agressividade, mas estava assustada.
         - Olhe, você entendeu tudo errado. – Recomeçou, de volta ao tom gentil. – Não vim falar com você com nenhuma segunda intensão, apenas fiquei curioso porque não parece combinar com este lugar.
         - E o que você tem a ver com isso? – Perguntou, ainda desconfiada, mas baixando um pouco a guarda.
         Sorriu gentilmente, erguendo um pouco a aba do chapéu e fazendo com que seus olhos verdes faiscantes olhassem diretamente os dela.
         - Nada, na verdade. Mas é que sou escritor e você pareceu interessante, então quis ouvir sua história, se você quiser me contar, claro.
         Suas palavras pareceram desarmar a jovem, que passou a olhá-lo como se fosse louco, mas não uma ameaça.
         - Desde quando escritores se vestem assim?
         - Escritores não podem se vestir bem?
         - Tu não ‘ta bem-vestido, só maluco pra usar terno nesse calor da porra.
         - O calor não me incomoda.
         - Maluco. – Repetiu, com um humor agressivo.
         O moreno expandiu seu sorriso charmoso, sinalizando ao homem atrás do balcão, que também lhe trouxesse uma cerveja.
         - Agora que já sabemos de mim, me fale de você. – Disse, colocando uma das mãos sobre a dela.
         Imediatamente, a garota ficou mais relaxada e com um sorriso macio, começou a falar.
         Se chamava Katye, era a mais velha de uma família de sete filhos, e cansada de suportar os assédios do atual marido de sua mãe, saiu de casa para viver com um namorado aos 16 anos.
         Eles viveram felizes por algum tempo, até que o homem decidiu que queria ter filhos e ela se recusava a engravidar, então começaram as brigas. Até que, naquela noite, ele a agredira com um soco na barriga, gritando que garantiria que jamais pudesse ter filhos. Então ela saiu de casa correndo e vagou até chegar a aquele bar.
         Katye contou a história como se falasse de algo corriqueiro, como o clima, com um sorriso frouxo nos lábios grossos, entorpecida. Passou pela sua mente que não havia bebido o suficiente para ficar naquele estado, mas o pensamento sumiu tão rápido quanto veio, sugado por uma névoa cor-de-rosa, que a colocou em um estado de tranquilidade que nunca antes sentira.
         Saulo manteve o sorriso gentil enquanto ouvia toda a história com atenção. Sentia o estômago revirar, constatando que ela era mais uma das pessoas que aquela sociedade tornara incapaz de amar. Era repulsivo.
         Sentindo uma fome muito mais profunda ou sinistra do que qualquer ser humano seria capaz, a convidou para acompanhá-lo até um motel próximo e a mulher aceitou, sem qualquer hesitação, os olhos vítreos devido ao êxtase.
         Alugou um quarto caro, em um motel que gostava de se fingir elegante, embora não passasse de uma espelunca. As paredes cor de creme eram encardidas, as molduras dos espelhos e a cabeceira tinham detalhes em dourado que estavam descascando, revelando o plástico preto por baixo.
         A garota parecia estranhamente adequada ao ambiente, ela tinha certa preciosidade que não combinava com sua triste história de vida ou com o lugar que a encontrara, mas durante tanto tempo ficara exposta a sujeira e sem cuidados, que perdeu seu brilho.
         Levou-a até o banheiro da suíte e a fez se despir, enquanto enchia a banheira amarelada. A pele escura se arrepiou lindamente em contato com a água gelada, sem que, no entanto, a jovem demonstrasse qualquer desconforto.
         Era uma banheira grande o suficiente para caber dois adultos, se bem colados, então ela não teve problemas em se alinhar com as pernas dobradas, fazendo com que a água chegasse a altura de seu colo.
         Saulo acariciou sua nuca com a ponta dos dedos, bem onde as últimas tranças tinham seu início e ela sorriu docemente, suspirando. Ele continuou afundando a mão nas tranças, sentindo a textura agradável dos fios e Katye semicerrou os olhos e entre abriu os lábios, entregue.
         Prendendo os dedos na nuca, como quem puxa a amada para um beijo, o moreno começou a forçar a cabeça da jovem para trás. O corpo deslizando sem resistência ao seu toque, afundando cada vez mais na água.
         Logo, toda a cabeça da jovem estava submersa, com a mão dele mantendo-se firmemente presa a nuca. Entorpecido, o corpo dela se contorceu fazendo vazar água pela borda da banheira, sem forças para realmente resistir.
         Saulo assistiu fascinado enquanto o ar deixava os pulmões. As mãos dela se prendendo nas laterais de seu terno, que a essa altura encontrava-se encharcado, como uma amante sedenta pelo toque de seu pretendente.
         Assistiu os olhos castanhos se arregalarem, enquanto o corpo tentava em vão respirar, os lábios se entreabrindo e deixando a água invadir os pulmões em uma expressão que remetia ao mais sublime dos orgasmos.
         Por um instante, viu a razão brilhar no fundo dos olhos vidrados, o desejo de viver dela quebrando seu encanto naquele último esforço de se manter viva, mas já era tarde demais e logo em seguida os olhos tornaram-se vazios, enquanto a vida a abandonava.
         As mãos soltaram sua roupa de forma macia, um braço afundando na água, enquanto o outro pendia solto para fora da banheira.
         Olhando o corpo sem vida, Saulo sorriu, insatisfeito, a fome aplacada, mas sem que houvesse real satisfação do apetite.
         Pegou o chapéu panamá e o colocou na beirada da banheira, a única marca que deixaria para quando encontrassem o corpo. Então se virou para partir, sem qualquer consideração maior do que alguém daria a um prato vazio, deixado em uma praça de alimentação.
         Quando saiu do quarto, seu terno estava novamente impecável e um novo chapéu protegia sua cabeça.
         Saiu do hotel sem chamar qualquer atenção, sentindo uma queimação similar a uma indigestão no fundo da garganta, enquanto a irritação crescia em seu interior.
         Aquela não era sua natureza, ele não existia para matar. Seus ancestrais ficariam envergonhados de suas atitudes, pois seu verdadeiro alimento era a paixão e o prazer.
         Houve um tempo em que bebia da paixão, viva um amor verdadeiro em intenso, que durava apenas uma noite e deixava seu fruto, considerado uma benção de saúde e beleza.
Aquela sociedade destruíra tais sentimentos, demonizando seus filhos, fomentando uma gula insaciável nos seres humanos, tudo passou a girar em torno de poder e lascívia, endurecendo corações que tornavam-se mais e mais incapazes de sentir.
         Destruíram a paixão, bem como os rios e lagos em que gostara de habitar, corromperam as emoções, tal qual poluíram o meio ambiente. O que fazia agora era sua vingança, onde antes deixara alegria e fartura, agora espalhava a desgraçada, tal qual fizeram com ele.
         Estava parado na porta do motel, fumando um cigarro enquanto refletia sobre isso, quando um táxi parou. O taxista sorriu simpático, com os olhos percorrendo seu corpo de forma que talvez pensasse ser discreta, quando ofereceu uma “corrida”.
         Saulo analisou a figura do homem, mesmo dentro do carro dava para perceber que era alto, passando a pouco dos 40 anos, com a pele bem queimada de sol, cabelos grisalhos bem cortados e uma barriga média, que criava uma elevação da camisa social puída.
         Abriu um sorriso sedutor, enquanto se acomodava no banco de carona.
O Rio de Janeiro é como um buffet coma tudo que puder, de beira de estrada. Tão barato, que se torna tentador, embora você saiba que não vai encontrar nada de realmente saboroso para saciar seu apetite. Mas incapaz se satisfazer, estava sempre com fome.

Fim.

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