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Corria, sem sequer conseguir enxergar
para onde, mas corria.
A vida inteira, ensinaram que tinha de
seguir em direção a luz sempre. A escuridão era vazia e assustadora, devia deixá-la
para trás. Então corria.
Tinha medo do que se escondia no
escuro, das criaturas que faziam das sombras sua morada. Precisava da luz, a
luz era boa, pura e sábia, lhe disseram.
Mesmo que não conseguisse enxergar para
onde ia e seus olhos ardessem com a claridade, corria. Deixava para trás a
noite, com medo de parar e ser alcançada por ela e por seus monstros que
devoraram pequenos humanos indefesos.
Tinha medo, tanto medo das trevas. A
lua parecia capaz de engoli-la e o brilho cintilante das estrelas debocharia de
sua agonia. Então ficava na luz, onde não enxergava muito, mas sentia-se
segura, pois talvez também não a enxergassem.
As lágrimas corriam por sua face, seus
olhos cansados da claridade constante. Porém os pés já não doíam mais, parara
de senti-los há tempos. Não podia parar, se parasse a escuridão a alcançaria.
A noite era sedutora, prometendo
descanso para seus olhos cansados, e
brisa fresca, para que pudesse repousar.
Quanto mais difícil ficava correr, mais
alto ouvia uma bela musica ecoar em suas costas, suave e ritmada, parecendo
ditar os movimentos de tudo que existe. Essa musica a fazia querer deitar e
descansar, parar por um instante, mas sabia que não devia.
Precisava continuar correndo, como
sempre disseram, esse era o caminho certo, o que sempre esperaram dela. Devia
correr cada vez mais rápido, deixando para trás todas as dúvidas e questões. Se
parasse agora, sua mente teria tempo para pensar o que não devia. Pessoas que
pensavam o que não deviam se davam mal. Então corria, que suas reflexões
permanecessem perdidas nas trevas às suas costas.
Não que fosse um esforço não
reconhecido, sempre a elogiaram por correr. As pessoas gostavam de quem fugia
das trevas, uma vez que elas também estavam correndo, batiam palmas e elogiavam
a velocidade.
Eram as pessoas que decidiam parar que
eram criticadas. “Loucas!” diziam, “completamente insanas”!
Pessoas que se perdiam nas sombras
jamais voltavam como antes. Traziam um brilho diferente, um sorriso misterioso,
que parecia debochar daqueles que corriam. Andavam devagar e por isso eram
desprezadas. Afinal, se estavam todos correndo, como podia alguém ousar andar
mais devagar?
Tão cansada que a corrida tornava-se
ainda mais difícil, não viu o buraco a sua frente. Perdeu o equilíbrio e caiu.
Os joelhos e mãos arrastaram no chão,
criando arranhões ardidos. Queria levantar, mas não conseguia. Pessoas passavam
ao seu redor, incapazes de parar para ajudá-la, focadas em continuarem a
correr, apenas gritavam: “Levante logo, a
escuridão se aproxima”!
Porém não conseguia mais. Chorou de
dor, de raiva e de medo, fechando os olhos, as lágrimas correndo em abundância
lavavam a ardência de tanto tempo olhando para luz fria e brilhante.
Sentia a escuridão começando a envolvê-la
e tremia de medo. Seu corpo respondia bem a caricia das sombras e ouvia a
musica ainda mais alto, como em um acalento. Era assustador, tinha que se
levantar e voltar correr, não podia se deixar seduzir pelos encantos da
escuridão, não devia.
Porém seu corpo não respondia a sua
vontade, muito cansado do tanto que correra até ali. Apavorada, não sabia o que
esperar e não tinha mais forças para lutar e resistir. Dormiu, certa de que era
seu fim.
Quando tornou a acordar, sentia-se
descansada como nunca em toda a sua vida. Seu corpo ainda doía devido a todo o
esforço que sempre fizera e pela primeira vez realmente sentia.
Ainda de olhos fechados, contava as
batidas ritmadas de seu coração, tão suaves e tranquilas, sentia a entrada e
saída do ar em seus pulmões, parecendo refrescar todo o seu interior.
Sua pele pinicava de forma
agradável, em contato com as folhas secas no chão e mesmo a dor aguda, dos
arranhões que ganhara na queda, parecia diferente. Como se só agora pudesse
sentir realmente, a percebia pequena, diante de todo o resto das sensações prazerosas
que tomavam seus sentidos.
Incerta, abriu os olhos e descobriu
que não mais ardiam. Demoraram um pouco a se adaptarem a iluminação mais fraca,
porém, quando o fizeram, percebeu que podia enxergar.
Não apenas as imagens distorcidas
que a luz excessiva a impedia de absorver com precisão. Agora via formas e
profundidades, sólidas e não meras miragens aqui e ali.
Olhou para o céu escuro e
surpreendeu-se em constatar que era lindo e arrebatador.
Pela primeira vez sentia com calma e
clareza, ouvia os sons ao seu redor, sem o medo constante de ser deixada para
trás. Sentia plenamente, sem ter que focar em continuar a se mover. Todos os
seus sentidos pareciam mais vivos e era delicioso explorá-los.
A escuridão já não parecia
assustadora, apenas tranquila.
A ideia de voltar a correr veio
seguida da pergunta “por quê?” e se
surpreendeu em notar que não conhecia a resposta.
Pensou na luz que a cegara até ali,
escondendo o caminho a sua frente. Correra seguindo outros, que pouco conhecia
realmente. Todos ocupados demais correndo, para se conhecerem. Ninguém sabia
para onde corriam, apenas seguiam na direção que lhe disseram, assustados
demais para parar e refletir.
Porém ela tinha sido forçada a parar
e agora as dúvidas, que sempre deixara para trás, a alcançavam. Na escuridão da
noite, onde os sentidos são mais sensíveis e uma musica suave a embalava, as
questões tinham tempo de se fazerem presentes e desafiá-la.
Percebeu que não as temia, entretanto.
Parou e pensou, refletindo sobre o que a levava a correr e o que realmente
conquistara até ali? Se tinha sentido seguir por aquele caminho, apenas porque
lhe disseram que era o certo, sem sequer ser capaz de enxergar aonde ele lhe
levava?
A cima de tudo percebeu que não
precisava ter medo de parar. A escuridão podia parecer assustadora, aflorando
os sentidos e dando tempo para que pensasse em coisas que sempre lhe disseram
que não valia a pena pensar, mas era mágico desvendar tudo aquilo que sempre
escondera na escuridão.
Percebeu que apenas ali conseguiria
encontrar a si mesma, não o que os outros lhe diziam que devia ser ou fazer,
mas, sim, seus reais e profundos desejos, aqueles os quais lhe ensinaram que
devia temer e fugir, mas que agora pareciam tão certos e naturais.
A verdade que só era possível
encarar na escuridão e que poderia guiar seu caminho, fazendo valer a pena
correr na luz ou nas sombras.
Fim.