quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Saturno.

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         O pânico causado pelo desmoronar da falsa bolha de segurança o tornava temido.

         Ele que era acusado de devorar tudo, enquanto esqueciam que também era responsável pelo nascer e crescer.

         Não era tarefa das mais agradáveis ter de responder tantos porquês, depois de tantas eras tornara-se enfadonho.

         Em algum momento, a eternidade soou convidativa, decidiram que apenas o que era eterno poderia ter valor e a busca pela imortalidade permitiu o nascimento das mais belas obras. Porém havia um vazio, uma frustração, esta sim eterna, por jamais atingir o objetivo.

         Na luta contra o passar das horas, as pessoas deixavam de aproveitá-las. Na luta para durar mais, não saboreavam o que tinham e se frustravam pela insuficiência.

         Amaldiçoava quem inventara o mito da eternidade e lhe atribuíra tanto valor.

         Seres tão curiosos os humanos, tão determinados a durarem, porém incapazes de lutar para aproveitar o que tinham. Curiosa espécie, que prioriza o sobreviver ao viver.

         Sim, era muito odiado, quando com sua foice vinha derrubar tudo aquilo que não estava firme. Cujas estruturas não se sustentavam mais de pé e em verdade sua permanência representava perigo.

         O brutal medo da mudança, tornara a espécie acomodada em torres que desmoronavam ao seu redor, sem que tivessem a coragem necessária para abandoná-la.

         Então ele vinha e quebrava essas bolhas de falsa proteção e eles o odiavam por isso. Porque os forçava a seguir em frente ao invés de ficarem parados onde só havia miséria e insatisfação.

         Insatisfação eterna, pois nada era o suficiente, nunca. Cobiçavam muito, porém se recusavam a dispor do pouco que tinham e o culpavam por passar, levando o que já não mais prestava e os forçando a buscar o novo.

         Era frustrante ser constantemente culpado por fazer o que a sua natureza determinava, enquanto aqueles que não o faziam, o acusavam de seus fracassos.

         Via-se em brigas desmedidas e guerras acirradas, sendo odiado e atacado. Tudo em vão, afinal era implacável.

         Gostava dos poucos sábios que o saudavam como um velho amigo, que bebiam de sua sabedoria e conquistavam sua amizade. Não que fosse menos doloroso para estes quando iam por terra construções que acreditavam serem firmes, mas ao menos compreendiam, aprendiam e seguiam. Carregavam consigo o que valia a pena, que lhes trazia real benefício e se dedicavam a buscar o que realmente desejavam. Eram prósperos.

         Os tolos, coitados, desejavam igualar-se a ele, clamando sua suposta imortalidade, incapazes de perceber que ele próprio morria e renascia a cada ciclo, deixando para trás o que já não mais prestava e abrindo espaço para novidades. Pois apenas assim é possível existir.


Fim.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Através dos Espinhos.

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            Sorriu, sentindo a primeira gota de chuva atingir seu rosto e refrescar a pele, lavando a mistura suor, sujeira, lágrimas e sangue que a cobria. Todo seu corpo parecia meio dormente, com arranhões que pulsavam quentes cobrindo seus membros.

         As roupas não passavam de trapos, sujos e rasgados, machados de terra e sangue, e a tira de uma de suas sandálias havia arrebentado, tornando incomodo andar.

         Tocou em seus cabelos com cuidado, sentindo os espinhos, presos no emaranhado de nós, espetarem seus dedos, tomando consciência de que seria extremamente trabalhoso e dolorido desembaraçá-lo.

         Apesar de tudo isso, sorria, sentindo-se bem consigo mesma. Vencera.

         Olhou para trás, vendo o grande emaranhado de arvores quase negras e arbustos baixos, que formavam o mar de espinhos que acabava de atravessar e sentiu vontade de gargalhar, sentindo-se viva como nunca antes.

         Todo o seu corpo doía, mas a sensação era boa. O sabor da vitória era doce e cobria o gosto férreo em sua língua.

         Durante tanto tempo relutou em enfrentar os espinhos. Gastou anos buscando caminhos alternativos e métodos de chegar ao outro lado sem ter que se enfiar naquele mar de dor.

         Porém era inútil, não importava por onde fosse ou o quanto desviasse, sempre acabava deparando-se com eles novamente. Extremamente afiados e parecendo fileiras de dentes em sorrisos terríveis, que debochavam de seu medo.

         Olhando-os agora, continuavam tão perigosos quanto antes, porém pareciam respeitá-la, como se reconhecessem sua bravura em  enfrentá-los.

         Talvez fosse apenas reflexo de suas próprias emoções. Se antes temia a dor e se julgava fraca, agora via nos arranhões provas da sua força e exibiria as cicatrizes com orgulho.

         Não que fosse algo bonito, mas eram provas de que superara aquele obstáculo e nada poderia ser mais gratificante.

         Não houve rotas alternativas, nem nenhum método efetivo para que fugisse do espinheiro. Todas as tentativas servindo para lhe ensinar de que precisaria encará-lo.

      Lembrava-se de quando finalmente desistira de fugir e dera o primeiro passo entre os galhos retorcidos.

Ainda podia ver a entrada, quando as primeiras lágrimas escorreram, com os espinhos arranhando sua pele, doendo ainda mais sempre que buscava se desviar.

Não demorou para que entendesse que não havia hipótese de se machucar menos, evitar a dor apenas a tornaria pior.

Então respirou fundo e começou a avançar a despeito da dor, incapaz de negá-la, mas prosseguindo de qualquer forma.

Logo seu corpo parecia anestesiado e o que era insuportável, agora não passava de um incomodo.

Nunca acreditou que era capaz, mas agora percebia que duvidara da própria força, sem nem ter tentado. Paralisada pelo medo de se machucar, atrasara seu avanço em muito tempo, quando na verdade sempre teve dentro de si o necessário para superar aquele muro de espinhos.

A chuva caia forte, refrescando seu corpo quente, lavando os machucados e fazendo-os arder de modo que lhe fazia sentir ainda mais viva.

Os raios cortavam o céu e era como se aquela energia percorresse seus membros, as batidas de seu coração tão altas, quanto os trovões que faziam o solo vibrar aos seus pés.

Olhando para frente, via o longo caminho que ainda a aguardava, antes de atingir seu destino. Longo e sinuoso, passando por locais desconhecidos, com muitas ameaças e novos desafios.

Pensou em quem era antes do espinheiro e percebeu que deveria sentir-se revoltada, afinal depois de toda a dor e sofrimento, ainda muito mais a esperava. Porém não se sentia assim.

Acabava de aprender um pouco mais sobre sua própria força e percebia que nada poderia impedi-la de atingir seu objetivo.

Jogassem os maiores desafios a sua frente, enfrentaria a todos, pois superara o espinheiro e descobrira sua verdadeira capacidade e resistência.

Sorriu, dando um novo passo, deixava para trás não um espinheiro terrível, mas todo o medo e insegurança que a impediam de avançar até então.

Bastava continuar em frente, crescendo e tornando-se ainda mais forte. Pois agora que sabia ser capaz, nada poderia pará-la.
Fim.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Luz Fria.

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         Corria, sem sequer conseguir enxergar para onde, mas corria.

         A vida inteira, ensinaram que tinha de seguir em direção a luz sempre. A escuridão era vazia e assustadora, devia deixá-la para trás. Então corria.

         Tinha medo do que se escondia no escuro, das criaturas que faziam das sombras sua morada. Precisava da luz, a luz era boa, pura e sábia, lhe disseram.

         Mesmo que não conseguisse enxergar para onde ia e seus olhos ardessem com a claridade, corria. Deixava para trás a noite, com medo de parar e ser alcançada por ela e por seus monstros que devoraram pequenos humanos indefesos.

         Tinha medo, tanto medo das trevas. A lua parecia capaz de engoli-la e o brilho cintilante das estrelas debocharia de sua agonia. Então ficava na luz, onde não enxergava muito, mas sentia-se segura, pois talvez também não a enxergassem.

         As lágrimas corriam por sua face, seus olhos cansados da claridade constante. Porém os pés já não doíam mais, parara de senti-los há tempos. Não podia parar, se parasse a escuridão a alcançaria.

         A noite era sedutora, prometendo descanso para seus olhos cansados, e 
brisa fresca, para que pudesse repousar.

         Quanto mais difícil ficava correr, mais alto ouvia uma bela musica ecoar em suas costas, suave e ritmada, parecendo ditar os movimentos de tudo que existe. Essa musica a fazia querer deitar e descansar, parar por um instante, mas sabia que não devia.

         Precisava continuar correndo, como sempre disseram, esse era o caminho certo, o que sempre esperaram dela. Devia correr cada vez mais rápido, deixando para trás todas as dúvidas e questões. Se parasse agora, sua mente teria tempo para pensar o que não devia. Pessoas que pensavam o que não deviam se davam mal. Então corria, que suas reflexões permanecessem perdidas nas trevas às suas costas.

         Não que fosse um esforço não reconhecido, sempre a elogiaram por correr. As pessoas gostavam de quem fugia das trevas, uma vez que elas também estavam correndo, batiam palmas e elogiavam a velocidade.

         Eram as pessoas que decidiam parar que eram criticadas. “Loucas!” diziam, “completamente insanas”!

Pessoas que se perdiam nas sombras jamais voltavam como antes. Traziam um brilho diferente, um sorriso misterioso, que parecia debochar daqueles que corriam. Andavam devagar e por isso eram desprezadas. Afinal, se estavam todos correndo, como podia alguém ousar andar mais devagar?

Tão cansada que a corrida tornava-se ainda mais difícil, não viu o buraco a sua frente. Perdeu o equilíbrio e caiu.

Os joelhos e mãos arrastaram no chão, criando arranhões ardidos. Queria levantar, mas não conseguia. Pessoas passavam ao seu redor, incapazes de parar para ajudá-la, focadas em continuarem a correr, apenas gritavam: “Levante logo, a escuridão se aproxima”!

Porém não conseguia mais. Chorou de dor, de raiva e de medo, fechando os olhos, as lágrimas correndo em abundância lavavam a ardência de tanto tempo olhando para luz fria e brilhante.

Sentia a escuridão começando a envolvê-la e tremia de medo. Seu corpo respondia bem a caricia das sombras e ouvia a musica ainda mais alto, como em um acalento. Era assustador, tinha que se levantar e voltar correr, não podia se deixar seduzir pelos encantos da escuridão, não devia.

Porém seu corpo não respondia a sua vontade, muito cansado do tanto que correra até ali. Apavorada, não sabia o que esperar e não tinha mais forças para lutar e resistir. Dormiu, certa de que era seu fim.

Quando tornou a acordar, sentia-se descansada como nunca em toda a sua vida. Seu corpo ainda doía devido a todo o esforço que sempre fizera e pela primeira vez realmente sentia.

Ainda de olhos fechados, contava as batidas ritmadas de seu coração, tão suaves e tranquilas, sentia a entrada e saída do ar em seus pulmões, parecendo refrescar todo o seu interior.

Sua pele pinicava de forma agradável, em contato com as folhas secas no chão e mesmo a dor aguda, dos arranhões que ganhara na queda, parecia diferente. Como se só agora pudesse sentir realmente, a percebia pequena, diante de todo o resto das sensações prazerosas que tomavam seus sentidos.

Incerta, abriu os olhos e descobriu que não mais ardiam. Demoraram um pouco a se adaptarem a iluminação mais fraca, porém, quando o fizeram, percebeu que podia enxergar.

Não apenas as imagens distorcidas que a luz excessiva a impedia de absorver com precisão. Agora via formas e profundidades, sólidas e não meras miragens aqui e ali.

Olhou para o céu escuro e surpreendeu-se em constatar que era lindo e arrebatador.

Pela primeira vez sentia com calma e clareza, ouvia os sons ao seu redor, sem o medo constante de ser deixada para trás. Sentia plenamente, sem ter que focar em continuar a se mover. Todos os seus sentidos pareciam mais vivos e era delicioso explorá-los.

A escuridão já não parecia assustadora, apenas tranquila.

A ideia de voltar a correr veio seguida da pergunta “por quê?” e se surpreendeu em notar que não conhecia a resposta.

Pensou na luz que a cegara até ali, escondendo o caminho a sua frente. Correra seguindo outros, que pouco conhecia realmente. Todos ocupados demais correndo, para se conhecerem. Ninguém sabia para onde corriam, apenas seguiam na direção que lhe disseram, assustados demais para parar e refletir.

Porém ela tinha sido forçada a parar e agora as dúvidas, que sempre deixara para trás, a alcançavam. Na escuridão da noite, onde os sentidos são mais sensíveis e uma musica suave a embalava, as questões tinham tempo de se fazerem presentes e desafiá-la.

Percebeu que não as temia, entretanto. Parou e pensou, refletindo sobre o que a levava a correr e o que realmente conquistara até ali? Se tinha sentido seguir por aquele caminho, apenas porque lhe disseram que era o certo, sem sequer ser capaz de enxergar aonde ele lhe levava?

A cima de tudo percebeu que não precisava ter medo de parar. A escuridão podia parecer assustadora, aflorando os sentidos e dando tempo para que pensasse em coisas que sempre lhe disseram que não valia a pena pensar, mas era mágico desvendar tudo aquilo que sempre escondera na escuridão.

Percebeu que apenas ali conseguiria encontrar a si mesma, não o que os outros lhe diziam que devia ser ou fazer, mas, sim, seus reais e profundos desejos, aqueles os quais lhe ensinaram que devia temer e fugir, mas que agora pareciam tão certos e naturais.

A verdade que só era possível encarar na escuridão e que poderia guiar seu caminho, fazendo valer a pena correr na luz ou nas sombras.


Fim.