sábado, 29 de abril de 2017

O Colar de Talassa.



Imagem localizada em banco de imagens gratuitas e editada por mim.

Para dentro do oceano,
grandes ondas vão arrastar
A cidade dourada,
de verde e prata mar.

Desfrute alegremente
a sereia a cantar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar!

Era uma lenda antiga, uma cantiga de criança tenebrosa, que os pais ensinavam a seus filhos a fim de que se comportassem direito.

Pelo menos foi o que sempre pensara.

Agora assistindo, encharcado pela tempestade, as grandes ondas que se erguiam como mãos negras, cavando seus dedos distorcidos cada vez mais para dentro da costa, percebia como havia sido tolo.

Flauta d’água era uma famosa cidade turística, em uma ilha paradisíaca ligada ao continente apenas por uma moderna ponte metálica prateada, que sempre pareceu ser etérea, como uma passagem para outro mundo.

A ponte era frágil demais, bastou uma onda bem direcionada e ela se partiu, isolando a ilha e impedindo a fuga de seus habitantes.

As histórias diziam que todo o dia ao amanhecer, se você estivesse em um dos diversos lugares de preservação da natureza da ilha, afastado dos centros comerciais barulhentos, era possível ouvir o canto de uma sereia, doce e suave como uma flauta hipnotizante.

Porém nunca acreditara nisso, nunca ouvira o canto e debochava daqueles que juravam ouvi-lo.

A maior atração de Flauta d’Água era um conjunto de ruinas a pouco menos de dois quilômetros da costa, onde se formara um incrível recife de corais, muito apreciado por toda a variedade de mergulhadores.

No centro das ruínas, acessível apenas para mergulhadores mais experientes com equipamento especial, se encontrava a estátua de Lígia. Conhecida como a sereia guardiã da ilha, cujo a voz seria ouvida nos amanheceres.

Os mergulhadores juravam que em seu colo repousava um incrível colar todo cravejado de pérolas e águas marinhas, com um imenso pingente de ouro na forma de uma concha que brilhava como um pequeno sol, apesar das águas profundas; O colar de Talassa. Diziam que tal brilho era o responsável por nunca ninguém ter conseguido tirar uma foto nítida da estátua e assim a lenda se perpetuava.

Contra todos os avisos, debochara. Riu quando Cassandra lhe garantiu que a lenda era real, que seu pai havia visto a estátua quando mais novo e a descreveu em detalhes. Sua amiga era sempre tão dada a acreditar em misticismos baratos.

Porém ele, não. Rodrigo sempre foi um cético, desde os 05 anos quando havia criado uma armadilha para capturar o Papai Noel e, tendo ficado de tocaia, viu sua mãe colocando os presentes na árvore de natal.

Quando a empresa Rota da Felicidade anunciou o concurso, garantindo que pagaria em dobro o valor da peça, para o mergulhador que conseguisse encontrar e trazer a joia submersa para eles, Rodrigo ousou cogitar a hipótese da lenda ser real. Não apenas isso, seria também sua grande chance de juntar o dinheiro necessário para deixar a ilha e iniciar uma vida no continente.

Diversos moradores se manifestaram contra tal concurso, dizendo ser uma blasfêmia. Devia tê-los ouvido.

Muitos mergulhadores vieram a cidade para tentar e falharam. Diziam ter sido arrastados por correntezas vindas de lugar nenhum, falhas inexplicáveis em seus equipamentos e, até mesmo, um que jurou ter visto a expressão da estátua se transformar em uma terrível carranca e ouviu uma voz feminina gritando que fosse embora.

Nada disso serviu para dissuadir Rodrigo da ideia, pelo contrário, apenas alimentou sua crença em ser o único capaz de cumprir o desafio.

Tendo trabalhado desde a pré-adolescência como assistente do pai de Cassandra, ajudando-o em suas pesquisas e mergulhos, conhecia o recife de corais como ninguém, como mudavam as marés e as correntes. Assim, mesmo sem nunca ter ousado mergulhar tão fundo, sabia ser capaz.

No dia marcado, uma pequena plateia de conhecidos se reuniram na costa. Menos Cassandra, que tinha tentado fazê-lo desistir uma última vez, na noite anterior e se recusara a ser testemunha da pior estupidez que ele já havia cometido. Palavras dela.

O céu estava completamente nublado, mas o mar permanecia calmo e liso como um espelho. O barco não teve qualquer problema em chegar aos recifes.

Checou o equipamento pela terceira vez, tendo certeza que nada poderia dar errado e mergulhou, sentindo o abraço gelado do mar cor de esmeralda.

Os primeiros pés foram tranquilos, estava acostumado a sensação. Porém quanto mais descia e a pressão aumentava, mais atento se tornava às batidas aceleradas de seu coração. Sentia um nó se formando na altura de seu estômago, mas associou aquilo a profundidade jamais experimentada.

Por duas vezes se viu pego por correntes que não deveriam estar naquele lugar, naquele momento, mas soube se desviar delas habilmente.

Finalmente, chegou a profundo centro das ruínas e arregalou os olhos, surpreendido, sentindo o ar lhe faltar.

Lá estava, no tamanho de uma pessoa adulta, a lendária estátua da sereia Lígia, o corpo talhado de modo tão perfeito na pedra, que parecia respirar e prestes a se mover a qualquer momento. Ou, pelo menos, essa era a ilusão causada pelo movimento das águas, tentou se convencer.

O rosto era fino e harmônico, os cabelos em cachos que pareciam flutuar ao redor do corpo perfeito, cada escama da cauda talhada a perfeição e os olhos pareciam carregar toda a sabedoria e paixão do oceano. Ela era aterrorizante e completamente sedutora.

Porém nada era mais impressionante que o colar. Nenhuma descrição lhe fizera justiça, as pérolas eram como pequenas gotas de orvalho, em um intrincado bordado de fios prateados tão finos, que pareciam quase não se podia ver, as águas-marinhas também, mas reluziam e tudo apenas servia para destacar a beleza da concha maciça, que parecia ter roubado toda a luz daquele ambiente.

“Vá embora.”

Ouviu, incapaz de identificar de onde vinha o som.

“Desista da sua ambição mesquinha, abandone este local.”

Desta vez, embora achasse estar ficando louco, jurou que as palavras vinham da estátua.

Checou seu equipamento, com medo de estar tendo alguma reação pela falta de oxigênio e constatou que não tinha muito tempo para voltar a superfície.

Uma voz no fundo de sua mente, muito parecida com a de Cassandra, suplicou que desse atenção as palavras da estátua e fosse embora, mas era o seu futuro ali, ao alcance de suas mãos.

Ignorando todos seus instintos, estendeu a mão e tocou a concha, que pareceu surpreendentemente quente, mesmo através da borracha das luvas que vestia. Puxou e a joia se soltou do pescoço da estátua, como uma criança que não quer largar a mãe, mas não tem forças para desistir.

Um choque percorreu seu corpo, desde a ponta de seus dedos, quase o fazendo soltar, mas Rodrigo insistiu e iniciou rapidamente seu caminho de volta.

Assim que voltou a segurança do interior do barco, percebeu o erro que cometera.

- O que você fez?! – Gritou seu amigo Pedro, com uma expressão atônita, segurando o timão do barco, como se parecesse ser seu único ponto de segurança, enquanto olhava fixamente para o horizonte.

Olhando na mesma direção, Rodrigo sentiu vontade de gritar, mas sua voz ficou engasgada em sua garganta.

Nuvens negras haviam se acumulado a cima de Flauta d’Água, despejando torrentes de água e a maior quantidade de raios que jamais vira.

Os gritos dos moradores chegavam a distância onde estavam, enquanto as vastas áreas de floresta tornavam-se vermelhas devido as chamas, que não paravam de avançar, a despeito da chuva.

As maiores ondas que já vira engoliam a uma vez pacífica costa e só então percebeu que a fúria do mar fazia com que o barco em que estava balançasse como uma pequena casca de noz.

- O colar! Devolva o colar! – Pedro tornou a gritar, fazendo com que o mergulhador se lembrasse que ainda segurava a joia.

Desesperado, sentindo a água do mar ser lavada pela tempestade que os atingia, arremessou a peça o mais longe que pode, em direção ao centro dos recifes.

Neste mesmo instante, assistiu uma onda certeira derrubar a ponte prateada, deixando para trás um monte de metal revirado, como o esqueleto de um monstro.

Impotente, assistiu o oceano engolir a cidade onde vivera toda a vida, tudo o que tinha e, provavelmente, todos aqueles que conhecia.

Sua pele gelada foi cortada pelo calor causticante das lágrimas que escorriam de seus olhos e sem que percebesse, murmurava e então gritava pedidos de desculpa e piedade.

Porém as forças da natureza permaneciam impassíveis, se vingando de sua arrogância e da de seus conterrâneos, que decidiram desfrutar da propaganda e promessas de investimento da empresa marítima, desrespeitando um contrato muito mais antigo.

Então, como se algo ancestral e cruel risse de sua desgraça, percebeu que os ventos uivantes que devastavam a outrora paradisíaca paisagem, pareciam cantar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar.

Fim.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Incêndio.

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         Começou como uma pequena fagulha, algo que poucos dariam atenção:

         - Chata!

- Gorda!

- Feia!

         Crianças podem ser cruéis, mesmo que não sejam capazes de entender a gravidade do que estão fazendo.

         - Se você não me der isso, não sou mais sua amiga!

         Os adultos tendem a ignorar, acharem besteira. Afinal, é só coisa de criança.

         - Não precisa chorar por isso.

- Que bobagem!

- Acho que ele gosta de você...

         Ninguém nota a pequena fagulha, até que atinja algum material inflamável e forme uma brasa, até chegar a uma pequena chama.

         - Não quero você no meu aniversário!

-Sai daqui!

- Só aceitei brincar com você, porque você tem esse brinquedo.

         Aos poucos, a intensidade da chama vai aumentando e o calor começa a se fazer notar.

         - Esquisita!

- Chata!

- Você é insuportável!

- Bruxa feia!

         Antes que percebam, o fogo vai tomando todo o ambiente e a fumaça tóxica torna difícil respirar.

         - Não encosta nela, se não você vai acabar ficando igual!

         O som do crepitar da madeira se torna insuportável, as chamas lambem a tinta da parede e assumem um ameaçador tom verde limão, destrutivo.

         - Sério que você gosta dele? Ridícula! Ele nunca ficaria com você!

         Pode parecer aterrorizante, mas trata-se de uma verdadeira libertação. Como a fênix, que arde em chamas, para depois renascer.

         - Viu a maquiagem? Que vadia carente!

         Não se preocupe, não é como se realmente houvesse alguém lá dentro. Ela não iria matá-los, nenhum deles valia que ela destruísse o próprio futuro desta maneira.

         - Piranha! Aposto que usa drogas...

- Você é tão estranha, ninguém quer transar com você!

- Dizem que ela dá pra qualquer um...

         O som dos vidros se partindo era ensurdecedor, uma chuva de cacos prateados decorando o chão do pátio, enquanto a fumaça pintava o céu noturno de cinza.

         - Pode me mostrar quem é a... O que? É você?! Ah...

         Não importava o quão antigo fosse o prédio, ele desmoronaria a qualquer instante.

         - Que cabelo horrível!

- Por que ela se veste assim?

- Nem o diabo merece ela!

         Sentia vontade de rir, dançar, cantar ou fazer tudo isso ao mesmo tempo. Amanhã todos saberiam, estaria em todos os jornais.

         A fumaça criava a impressão de que toda a estrutura balançava, não resistirá por muito mais tempo.

        - Dizem que ela gosta desse cantor

- Eu queria ter ido no show dele.

- Ela foi!

- Vamos pedir para que finjam ser ele e enganá-la, vai ser divertido!

         Não precisava de sangue, teria nojo de entrar em contato com qualquer parte deles. Porém aquele prédio, aquele símbolo iria ser destruído.

        - Mas ela é legal, sempre ajuda com os trabalhos...

- Ela tenta...

- Vadia!

- Puta!

         Finalmente a explosão. Todo o prédio fora a baixo. Estilhaços chegaram há três quarteirões de distância. Diversos ex-alunos dizem ter ouvido a explosão, embora morassem a quilômetros de distância.

         Porém ninguém foi atingido, não houve um morto ou ferido. Chamavam de sorte ou milagre.

         Ela ria, assistindo a tudo de longe, na superfície de seu espelho.

         Diziam que ela era boa em ver o futuro, mas nem tanto.

         Seus antigos colegas de colégio eram mais, eles previram desde a infância o que ela seria: Uma bruxa.


Fim.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Boa Menina.

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         Só queria sentir sua dor em paz, será que era tão difícil? Não tivera uma noite tranquila nos últimos 15 dias. Constantemente atormentada por pesadelos onde assistia, incapaz de se mover ou gritar, aldeões sem face enforcarem uma pequena menina cega e então seguirem em um tétrico cortejo funerário, como se não fossem eles os próprios assassinos.

         Falhara e nada que dissessem poderia convencê-la do contrário. Marcos bem tentara:

         - Não tem sentindo continuar remoendo isso. – Ele falou, fixando os profundos olhos escuros nos dela, parecendo capaz de ler todos os segredos de sua alma.

         A exterminadora desviava o olhar para a caneca de cerveja e a esvaziava em um gole. Só queria ficar sossegada.

         Depois do caso do Cavalo das Águas, na pequena vila de pescadores no Reino Sul, levara três dias para se recuperar dos ferimentos físicos e ainda não se recuperara dos traumas mentais.

         As palavras do monstro sobre como era carente e fraca, assim como a imagem da menina sacrificada pelos aldeões, assombravam seus sonhos.

         Seguiu para a estalagem Flecha de Prata, na fronteira entre os Reinos Sul e Oeste, sua terra natal. Embora não gostasse de estalagens de exterminadores de modo geral, ali era o único local que podia chamar de casa.

         Marcos a conhecera quando era criança ainda, viajando com sua mãe. Ele foi um dos únicos que não a olhou diferente por ser o que era, mesmo sendo um exterminador aposentado, e a estalagem lhe pertencia.

         Depois de uma semana de insistência, Amaryllis cedeu, finalmente aceitando ouvir o caso.

         Lagoa rósea era uma cidadela próxima à estalagem, que recebera este nome devido ao lago ao entorno do qual se desenvolvera, onde algas especiais deixavam a água num suave tom rosa.

         Era conhecida como um local pacífico e bucólico, destino para casais apaixonados e em lua-de-mel, com todos os clichês adocicados que este tipo de ambiente pode proporcionar.

         Cinco garotas tinham morrido na cidade, três suicidas, sendo que uma delas havia matado mais duas, antes de tirar a própria vida. Seu ex-noivo, frustrado com o descaso das autoridades locais, decidiu contratar um exterminador para lidar com o caso. Convencido da existência de influência não-humana.

         Quando Marcos descreveu o caso, com um pequeno sorriso sarcástico, a meio-licantropo teve vontade de afundar a cabeça dele no tampo de madeira da bancada do bar. Era o tipo de caso que envolvia uma carga emocional que não queria lidar no momento, arranhava muitas de suas feridas... E era exatamente por isso que ele insistira que pegasse.

         Com as reservas do pagamento do último caso no fim, não teve muita escolha.

         Encontrou o homem que a contratara em sua casa, no centro da cidade. O jovem, franzino, tinha a pele em um tom acinzentado doentio, os olhos inchados e opacos, vermelhos de tanto chorar e os cabelos castanhos despontando para todos os lados. Sua noiva falecera havia apenas cinco dias.

         Quando se apresentou, ele não teceu qualquer comentário sobre sua clara herança inumana. Fosse por não se importar ou estar muito deprimido para ligar, era sempre um ponto positivo quando acontecia.

         - Lívia era a garota mais doce que se pode imaginar! – O ex-noivo falou com a voz embargada. Mostrando uma pequena foto em preto e branco da jovem, em um medalhão. – Nunca faria mal a ninguém!

         Observando a imagem da vítima, Amaryllis acreditava. A garota parecia tão pequena e frágil, que não deveria conseguir machucar alguém, ainda que quisesse.

         - Me diga o que aconteceu.

         - Ela começou a mudar há uns dois meses. Nunca entendi o motivo, mas ela parecia desinteressada em tudo que sempre amou...

         - Você inclusive. – A exterminadora não conseguiu se impedir de dizer.

         O homem engasgou, levando alguns segundos para tornar a falar:

         - Ela começou a se vestir de um modo estranho, com roupas impróprias para uma mulher direita! – Amaryllis ergueu as sobrancelhas, cruzando as pernas de modo a friccionar as calças de couro preto e ecoar um som desagradável no ambiente. A sola plana do coturno virada diretamente para o homem, que desviou o olhar. – Quando tentei chamar sua atenção, riu na minha cara e falou que tinha o direito de fazer o que quisesse!

         Dessa vez teve a presença de espírito de permanecer em silêncio, mordendo o lábio inferior para conter qualquer réplica sarcástica.

         - Em suas duas últimas semanas de vida, estávamos mais afastados do que nunca. Ela não respondia minhas mensagens, não vinha me visitar e nunca estava em casa quando ia visitá-la. – Continuou. – No dia anterior a sua morte, me disseram que estava em uma taverna e eu fui confrontá-la. Ela estava cercada por mulheres que nunca tinha visto antes e quando pedi que fosse comigo para casa, debochou de mim e disse que não tínhamos mais nada, que... – Engasgou, deixando que algumas lágrimas escapassem. – Que tinha encontrado um homem de verdade e que não queria mais me ver. Jogou o anel de noivado na minha cara e se virou para suas amigas, que riam acompanhando toda a cena.

         - Você deve ter se sentido muito humilhado. – Ela comentou, não conseguindo se emocionar com a história.

         - Eu me senti traído! – O homem exclamou, deixando pela primeira vez transparecer sua raiva. – Lívia me traiu, se transformou numa vadia da noite para o dia e jogou fora todos os anos que me dediquei a ela! E então... Então...

         - Ela matou outras duas mulheres e se matou? – A exterminadora o cortou e assistiu seu contratante apenas acenar em confirmação com a cabeça. – E você decidiu contratar meus serviços exatamente por quê?

         - Porque... Bem, porque deve haver alguma explicação para essa mudança na minha doce Lívia! Alguma criatura maligna deve tê-la possuído e corrompido sua pura alma!

         - Ou ela simplesmente se libertou de todas as amarras que colocaram sobre ela a vida inteira e você quer uma desculpa para o seu orgulho ferido? – Não tinha intensão de ser cruel, mas sabia que estava sendo.

         - Ela matou duas pessoas!

         - Alguém que teve seus desejos tolhidos durante toda a vida, quando finalmente se liberta podem cometer loucuras. – As palavras tinham um gosto amargo em sua boca. A pergunta “Falando em causa própria?” ecoou no fundo de sua mente, em uma voz perturbadoramente similar a de sua mãe.

         O homem que a contratara, estava olhando-a em silêncio. Chegou a abrir a boca algumas vezes, como se fosse dizer algo, apenas para fechá-la em seguida.

         Percebendo que havia cruzado uma linha indevida, Amaryllis se encolheu e levantou, retomando a postura profissional.

         - Bem, nada disso importa. Você me contratou para investigar a morte da sua noiva e eu farei isso. Qualquer que seja o resultado da investigação lhe informarei. – Concluiu, saindo da casa.

         Sentia-se envergonhada por seu descontrole. As atitudes do homem a irritaram bem mais do que deveriam e ela sabia os motivos, ao mesmo tempo sempre que agia por impulso, lembrava de sua mãe a censurando ou duvidando de sua capacidade de tornar-se exterminadora. Adicionando mais um pouco de frustração, ao coquetel de emoções negativas que inundavam sua mente.

         Na primeira hora do dia seguinte, se dirigiu para o necrotério, pois quanto mais rápido fosse, mais rápido poderia sair de lá.

         O hospital era um prédio de três andares, simples e austero, a não ser pela fachada rosa, seguindo a cor da maior parte da arquitetura da cidade. Nos fundos do primeiro andar, achou o setor que procurava e foi atendida por uma sorridente médica, que destoava do ambiente.

         A jovem era pequena, mas, para Amaryllis, a maior parte das pessoas, especialmente outras mulheres, eram. Com curtos cabelos loiros, cacheados e grandes olhos cor de mel, que brilharam de fascinação quando se apresentou como exterminadora.

         - É uma tragédia sem precedentes o que aconteceu com essas mulheres. As autoridades locais não sabem como agir, já que na verdade isso é totalmente incomum por aqui.

         - Suicídios? – Perguntou desinteressada, assistindo a legista abrir as gavetas que ainda guardavam os corpos das três últimas vítimas.

         A vantagem de cidades era os geradores de energia, que permitiam câmaras de resfriamento e reduziam o cheiro de decomposição.

         - Assassinatos. – Respondeu, em um tom alegre desconcertante. – Suicídios de mulheres na verdade são bem comuns em Lagoa Rósea.

         Amaryllis parou de examinar o corpo da primeira vítima, que contava com sete perfurações de faca espalhadas entre o colo e o abdômen, para olhar diretamente para a médica.

         - Eu não sabia disso.

         - Poucas pessoas sabem. – Falou, dando uma risadinha. – Não é muito bom para o turismo, né?

         Não tinha sarcasmo ou deboche nas palavras da mulher, apenas um assustador bom humor em tratar tal tema.

         - Não, eu suponho que não... Por que ocorrem tantos suicídios... – Parou para ler o nome da mulher bordado em seu jaleco. – Ana?

         A médica parou por um instante, levando o dedo indicador aos lábios, em uma caricata expressão pensativa.

         - Muita pressão, talvez? – Ela parecia falar mais para si mesma. – Se você passa toda a vida em uma cidade que vive de romance e sonhos, meio que todos esperam que tenha uma relação assim. As moças são ensinadas desde cedo que a felicidade esta ligada a relacionamentos duradouros e que casar é o caminho para viver bem. Quando atingem uma certa idade, sem conseguirem ou estarem em vias de concretizar isso, elas se desesperam e muitas decidem acabar com as próprias vidas.

         - Não foi o caso dessa aqui. – Amaryllis falou, apontando para o cadáver que reconheceu ser Lívia. – Ela tinha um noivo completamente apaixonado por ela.

         - Uhum. – Confirmou a legista, sem parecer surpreendida pela informação. – As três garotas que se mataram tinham relações estáveis.

         Amaryllis lambeu o lábio superior, em uma demonstração de nervosismo. Esta era mais uma informação nova.

         - É por isso que as autoridades estão tão perdidas, a situação foge totalmente do nosso normal.

         Acenou a cabeça, confirmando que compreendia e voltou a analisar os corpos. As mulheres assassinadas tinham seus troncos marcados por profundas facadas, distribuídas sem planejamento, demonstrando a fúria com que o crime foi praticado.

         Lívia, porém, foi encontrada sentada tranquilamente, com a cabeça dentro do forno. Uma morte suave e tranquila, que destoava da assassina brutal.

         Embora tivesse tentando evitar pensar no lençol branco que cobria o corpo, a imagem embrulhando seu estomago ao despertar lembranças desagradáveis, finalmente o reconheceu e removeu, revelando a primeira grande pista de sua investigação.

         Partindo de seu sexo, até o ventre e sumindo por entre as coxas, diversas veias negras marcavam a pele agora azulada.

         - O que são essas marcas? – Perguntou, sem olhar para a legista, que deu de ombros.

         - Ninguém sabe dizer.

         - Todas as garotas que se mataram possuíam essas marcas?

         - Sim, as três. – A tranquilidade de Ana se tornara desagradável em um novo patamar.

         - E como isso não consta em nenhum relatório de autópsia?! – Amaryllis falou entre os dentes, esforçando-se para não gritar.

         Sabia que seus olhos deviam reluzir como raios, mas a outra mulher não pareceu se abalar.

         - O doutor Eduardo decidiu não colocar, disse que devia se tratar de alguma droga nova e não quis expor essas mulheres ainda mais.

         - Com que autoridade este idiota decide o que consta ou não nos relatórios de autópsia?!

         - Com a autoridade de médico chefe, responsável pelo necrotério deste hospital. – Respondeu uma voz grave, vinda da porta de entrada da câmara de resfriamento.

         Seu dono era um homem alto, de cabelos castanho escuros, rosto quadrado, com barba por fazer e quentes olhos castanhos, com pesadas olheiras. Toda a sua postura denotava força e dignidade, mesmo com os claros sinais de cansaço, demandando respeito.

         Amaryllis teve vontade de arrancar seu pequeno sorriso de escárnio com um tapa.

         - A sua irresponsabilidade pode ter provocado um grave atraso na investigação dessas mortes! – Falou, erguendo-se de onde tinha se inclinado para examinar as vítimas. – Se essas marcas constassem no relatório da primeira morta, talvez as outras estivessem salvas.

         Amaryllis sentiu a raiva crescer em seu coração, assistindo ao legista dar de ombros.

         - Ninguém podia salvar essas garotas, porque elas queriam se matar. – Falou lentamente, como se explicasse algo a uma criança.

         - Talvez. – Retrucou a exterminadora, mordendo a parte interna das bochechas para conter a irritação. – Porém diante dessas marcas não podemos afirmar com certeza. Afinal podem ser indicação da influência de alguma criatura ou feitiço sobre essas mulheres.

         - Por que pensaríamos isso? – Insistiu em perguntar, fazendo pouco das palavras dela.

         - Porque, doutor... – O título veio com uma carga extra de deboche, acompanhado de um sorriso cínico por parte da meio-licantropo. – Não sei quando foi a última vez que viu uma mulher viva sem roupa, mas essas veias negras não são comuns.

         - Se for um convite, aceito te ver sem roupa, exterminadora.

         Uma grande onda de náusea subiu pela garganta de Amaryllis, deixando um gosto amargo em sua boca, ao assistir o médico olhá-la de cima a baixo, enquanto dava a resposta vulgar.

         O homem sorria, inabalado, fazendo com que ela se sentisse pequena e vulnerável. Tinha vontade de socá-lo, mas não podia, não sem perder a razão.

          Sentiu-se desconectada do mundo por alguns segundos, perdida nos próprios conflitos, e quando retornou notou que o médico falava com Ana.

         - Quando terminar de redigir meu último relatório, pode ligar para minha esposa e avisar que não vou jantar em casa hoje?... Obrigada, você é a melhor! – Falou, piscando um olho e jogando um beijo para a médica.

         Amaryllis lhe deu um olhar inquisitivo, ao que ela apenas deu de ombros.

         - Não vale a pena se irritar com essas coisas. – Respondeu, com o doce sorriso inabalável.

         Uma nova onda de revolta queimou o peito da exterminadora, que deixou o necrotério a duros passos.

         O médico Eduardo não era o primeiro homem babaca que encontrara em seu caminho e, infelizmente, duvidava que fosse ser o último. Machista, descrente de suas habilidades como investigadora, tudo isso seria fácil de lidar em dias comuns. Porém não engolia como alguém podia ser tão arrogante e irresponsável. Tendo omitido aquelas informações, ele se tornara cumplice do que quer tivesse influenciado aquelas mulheres a se matarem. Se esta criatura existisse.

         Voltou à pequena pousada em que havia se hospedado, dado a inexistência de estalagens de exterminadores na cidade. O quarto era irritantemente romântico e a recepcionista parecia julgá-la com o olhar sempre que passava pela entrada, mas servia ao propósito.

         Releu os relatórios das autópsias, sentindo a raiva arder em suas entranhas, ao lembrar da expressão debochada do legista e a passividade da outra médica.

         Questionava se algo mais havia sido omitido, mas não parecia ser o caso. 
Não sentira nenhum cheiro incomum nos corpos, nada que denotasse contato das vítimas com alguma substância alteradora da consciência, que conhecesse, e os relatórios confirmavam isso.

         Sentindo a cabeça doer, decidiu parar por aquele dia e buscar o bar mais próximo onde pudesse beber até dormir, com esperança de as grandes quantidades de álcool bloquearem os pesadelos. A premissa de poder se embebedar, sem o olhar recriminatório de Marcos sobre si era animadora.

         O bar em que parou era próximo a pousada e seguia o padrão açucarado do resto da cidade, mas tinha uma tequila de relativa qualidade, a um preço justo, então ia servir.

         Sentada junto ao balcão, virava o terceiro shot de bebida, quando percebeu alguém sentar ao seu lado. Virou-se, encontrando Ana a olhá-la com seu sorriso irritante.

         - Ainda irritada com o doutor Eduardo? – Perguntou, olhando os copos vazios na acumulados na frente da exterminadora.

         Amaryllis apenas se virou de volta para a parede de bebidas atrás do bar, sinalizando que queria mais uma dose, antes de responder sem tornar a olhá-la.

         - Não seja idiota, não bebo por culpa daquele babaca, bebo por causa desse maldito caso infeliz, que outro babaca me encheu até eu aceitar!

         A legista riu, sinalizando ao bartender que queria o mesmo que ela estava tomando. Amaryllis ergueu uma sobrancelha, vendo a médica de aparência delicada virar a bebida como se não fosse nada, mas preferiu não comentar.

         - Homens tendem a ser bem desagradáveis de vez em quando, né? – Comentou a legista.

         Sem interesse em conversar com qualquer pessoa, a meio-licantropo permaneceu apreciando sua bebida em silêncio, sentindo lentamente a dormência começar a se espalhar pelas pontas de seus dedos.

         - O doutor Eduardo não é tão mal assim. – Continuou Ana, inabalada, dessa vez arrancando uma meia risada sarcástica da exterminadora. – Realmente não é! – Reafirmou, virando a segunda dose. – Pode ser meio bruto e ter dificuldades em se manter fiel, mas ele realmente trata bem as mulheres com quem se relaciona e...

         - Porra! – Exclamou, Amaryllis, sem vontade de se conter após o quinto shot. – Você esta tão apaixonada por este filho da puta.

         - Nã-não estou! – A médica afirmou categórica, com as bochechas 
vermelhas.

         - Ah, sim, você esta! – Respondeu Amaryllis, com uma nova risada sarcástica, sentindo um prazer cruel em quebrar a imagem tranquila da legista. – Caidinha por um completo canalha!

         - Você não sabe do que esta falando. – Retrucou, encolhendo-se no banco.

         - Deixa eu adivinhar: Aposto que ele te seduziu e comeu em sua própria sala, no necrotério. Prometeu que se divorciaria, disse que a amava e várias outras coisas bonitas?

         - Não. – A médica falou, agora com um fio de voz, que nenhuma pessoal normal ouviria. – Ele nunca fez nada disso... – Parou de falar, engasgando e Amaryllis percebeu uma fina lágrima escorrer no canto de seu olho esquerdo, o cheiro salgado trancando sua garganta. – Ele nunca olhou para mim.

         Um terrível sentimento de culpa tomou a meio-licantropo, que percebeu ter ido longe demais. Sentia-se uma completa idiota por ter atacado a outra mulher daquela forma, mais uma culpa para persegui-la aquela noite.

         - Ei... Também não precisa chorar.

         - Não, você tem razão. – Continuou Ana, cortando-a. – Eu sou realmente patética por alimentar qualquer esperança em me relacionar com um homem casado... Nossa, eu sou mesmo uma vadia.

         Agora a mulher chorava de verdade e Amaryllis sentia-se tão culpada, mesmo sabendo que não era para tanto, que tinha vontade de bater a cabeça na parede até calar todas as vozes de autocondenação:

         - Ok, também não é para tanto...

         - Eu sou tão ruim... – Ana tornou a cortá-la. - Que cheguei a ficar feliz quando soube que a Lívia morreu!

         Ok, essa ultima afirmação não fazia qualquer sentido e mesmo sob efeito da bebida, Amaryllis soube reconhecer que havia algo errado.

         - O que a morte da Lívia tem haver com a história, Ana? – Perguntou, segurando o legista pelos braços e olhando-a diretamente nos olhos.

         A mulher tremeu, dividida entre a surpresa e as lágrimas, antes de responder:

         - Lívia era amante do doutor Eduardo.

         Chegando a arregalar os olhos de surpresa, a exterminadora chegou a apertar com mais força do que devia os braços da legista, antes de finalmente soltá-la.

         - Espera, então Eduardo era o tal “homem de verdade” pelo qual Lívia trocou o noivo! – Fosse pelo álcool ou pela surpresa, estava difícil para Amaryllis absorver a informação. – Foi ele que a incentivou a mudar e tudo mais?

         Soltou a legista, que se encolheu contrariada e desviou o olhar.

         - Não sei se ele pode ser culpado pela mudança dela... Mas é sempre assim, conviver com ele deixa as mulheres mais bonitas, seguras de si mesmas ou algo do tipo. Elas parecem brilhar.

         Sentindo-se cada vez mais sóbria, Amaryllis sinalizou o pedido de duas novas doses. Convencida de que as informações da legista eram importantes para o caso, estava determinada a embebedá-la até descobrir tudo que precisava.

         - Todas as mulheres, então, hm? Quem eram elas? As outras vítimas?

         Ana vacilou por um instante e Amaryllis lhe empurrou um novo copo, que virou, parecendo ter reencontrado sua voz no fundo.

         - Não, bem... Não posso dizer, há boatos de que ele saiu algumas vezes com a Emília, mas Débora era sua irmã!

         Idiota, mil vezes idiota! a vontade de bater a própria cabeça em uma superfície dura voltou com força total. Como pudera deixar um detalhe tão relevante escapar?!

         - Então todas as vítimas estavam ligadas a ele? – Perguntou em tom de afirmação, só precisava que fosse confirmado.

         - Não exatamente. – Respondeu Ana, com as bochechas coradas pelo álcool. - Ele não conhecia as duas garotas que Lívia matou, até onde eu sei.

         Claro, as meninas assassinadas. Elas eram as peças destoantes do quebra-cabeças. Porém não havia problema, pois todo o mais encaixava. Iria confrontar o médico, descobrir como ele controlou as três garotas e o faria confessar o motivo de levar Lívia a cometer assassinatos. Assim resolveria o caso.

         Levantou, deixando cinco moedas douradas sobre o balcão, o suficiente para pagar suas bebidas e as da legista, e saiu sem dizer mais nada.

         A excitação era tão grande, que sentia seu coração pulsar acelerado, o som das batidas abafando os do ambiente ao redor. Estava tão certa de seu palpite, que sua vontade era farejar o médico até sua residência e resolver tudo. Porém havia meios mais simples.

         Uma rápida ligação ao hospital, identificando-se como exterminadora e inventando algo sobre perigo iminente e estava com o endereço em mãos.

         Para sua surpresa, a visita ao local foi um fracasso. Teve que se esgueirar parar ultrapassar o porteiro do elegante prédio e chegar ao apartamento, mas para sua surpresa, ele se encontrava em estado caótico.

         Uma grossa camada de poeira cobria as superfícies, diversos móveis estavam jogados pelo ambiente e os quadros da parede tortos. Parecia que uma grande luta ocorrera no local, porém não havia qualquer cheiro de sangue ou algo similar que confirmasse a hipótese.

         Repassando os fatos ocorridos, tentou descobrir se havia deixado passado algum detalhe... Ate que se lembrou “avise a minha esposa que voltarei tarde hoje”, ele dissera mais cedo para Ana, enquanto investigava as mortas.

         Não fazia sentido, o apartamento parecia abandonado há dias, sem que ninguém entrasse ali.

         Bem, era mais uma coisa a questionar quando conseguisse capturá-lo. Correu para o hospital, torcendo para ainda encontrá-lo lá dentro.

         Mesmo sob o cheiro de decomposição e química, o odor de suor e uísque barato se destacava, quando entrou no necrotério. A porta da sala do consultório estava trancada, mas foi fácil arrombá-la.

         Lá dentro o cheiro se intensificara beirando o insuportável e Amaryllis levou dois segundos para se recompor, encontrando Eduardo praticamente debruçado sobre sua mesa, com a mão firmemente agarrada a um copo cheio e uma garrafa quase vazia pousada na lateral da mesa.

         Quando ergueu o olhar, seus olhos estavam nublados pelo álcool, ainda sim tentou uma versão bêbada do sorrisinho arrogante que usara mais cedo.

         - Exterminadora, você voltou para cumprir a promessa de me deixar te ver pelada? – O médico levantou cambaleante, parecendo sequer saber o que dizia.

         Perdendo o equilíbrio, tornou a se apoiar na mesa, rindo de leve.

         - Não banque o idiota. O que fez com aquelas garotas?!

         A raiva que recuara diante da patética imagem do homem, voltou a arder com força em seu peito diante das palavras e Amaryllis falou entre dentes, com os olhos faiscando.

         - Não vamos falar do passado, não quando o presente pode ser tão mais interessante.

         Enquanto falava, se esforçou a ficar de pé nas próprias pernas, mas na tentativa de ir até a mulher, se desequilibrou em praticamente se jogou em cima dela.

         A meio-licantropo não hesitou em erguer o joelho com força, acertando o abdômen do homem em cheio e fazendo-o cair no chão em posição fetal, sem qualquer resistência.

         Eduardo chorava, a bebida levando embora qualquer resquício de orgulho ou amor próprio. Era uma cena ridícula, mas não restava dúvida que se tratava de um simples humano ou o arremedo de um.

         - Vadias, todas vadias! Todas as mulheres só nos machucam. – murmurava, abraçando o local onde fora atingido, enquanto chorava ruidosamente.

         - Por isso decidiu matá-las? – Amaryllis sentia-se desconfortável diante da cena a sua frente, não era como tinha imaginado confrontá-lo.

         O médico apenas passou a chorar com mais intensidade.

         - Eu não matei ninguém! Eu juro que não matei ninguém! Elas... Elas se mataram apenas para me torturar, elas não pensaram em mim!

         A imagem do homem era desconcertante e fazia com que ela sentisse diversos nós se formarem em seu interior, aquele homem era tão pequeno, fraco e vazio, que lhe provocava a mais pura pena. Chegou a cogitar matá-lo, apenas para encerrar aquela situação, para na sequência notar que simplesmente não se importava o suficiente para valer o esforço.

         - Esta dizendo que não teve culpa na morte de sua irmã?

         - Não, não... Eu amava a Débora! Minha irmãzinha, ela era tão meiga, eu só queria protegê-la! Diziam que era muito duro com ela, não a deixava se divertir, mas não podia arriscar que achassem que ela não era uma mulher direita, que ela era uma qualquer, mulher de vida fácil, que ela era...

         - Como as mulheres com quem você costumava se relacionar? – Completou, sentindo uma nova onda de repulsa por aquele homem. – Como Emília?

         Uma nova leva de soluços doloridos deixou a boca do médico.

         - Ah, Emília, ela era tão boa para mim! Mas ela queria que eu largasse minha esposa para ficar com ela. Eu, um médico! Deixar minha esposa, para me casar com a filha da passadeira. Uma garota negra, ainda por cima, pode imaginar?!

         Ele forçou um riso fraco, sentando-se no chão, largado como um boneco de pano.

         Uma nova vontade de agredir Eduardo tomou a exterminadora, mas sentia nojo só de imaginar tocá-lo.

         - E Lívia? – Perguntou em uma voz isenta de emoções.

         Um sorriso que poderia ser considerado doce em qualquer outra pessoa tomou as feições macilentas do bêbado.

         - Lívia era um anjo! Tão pura! Que homem poderia ter resistido  uma mulher tão linda e intocada?

         - Ela tinha um noivo. – Falou, sem realmente se importar, puxando-o de volta de seus pensamentos.

         - Um merdinha! Lívia precisava de um homem de verdade!

         Amaryllis deu uma risadinha debochada, deixando que todo seu desprezo refletisse em sua expressão, satisfeita em vê-lo desviar o olhar.

         - E a sua esposa? – Precisava saber se devia se preocupar com mais uma vítima perdida pela cidade.

         - Depois que Lívia morreu, ela foi embora. Eu fiquei destruído e ela disse que não suportava mais, que tolerava as traições, mas que me ver chorar pelas minhas amantes era demais e foi embora há cinco dias.

         Tendo conseguido alcançar a garrafa no canto da mesa, Eduardo voltou a beber, enquanto novas lágrimas grossas corriam de seus olhos.

         - Por que não falou sobre as marcas nos relatórios?

         - Como poderia?! – O homem quase gritou. – Eu sou médico! Elas eram minhas mulheres, minha irmã, minhas amantes, como eu poderia ter deixado isso passar?! Como explicar aos colegas? Seria o meu fim!

         - Então para manter seu orgulho intacto, você simplesmente omitiu uma informação crucial sobre as mortes. – Falou, tendo certeza de que se encontrava em frente a um dos seres mais desprezíveis que já encontrara em sua vida.

         - Me mate. – Pediu em um fio de voz.

         Amaryllis se curvou sobre ele, apoiando as mãos, com as longas garras a mostra nas laterais se sua cabeça e falou com um sorriso feroz, seus caninos expostos e sua voz rouca, demonstrando toda a sua genética ancestral.

         - Não vale a pena. – Teve vontade de rir, vendo o homem se encolher de medo.

         Já estava ereta novamente e pronta para se virar e sair, disposta a continuar a investigação no dia seguinte. Quando o som do tiro invadiu seus ouvidos, a bala passou zunindo na lateral de seu rosto e se alojou perfeitamente na testa do médico.

         Virou-se para encontrar uma sorridente Ana a encará-la, com a arma ainda em punho.

         Não entendia como podia ter deixado de notar a aproximação dela, até notar o brilho bruxuleante de seus olhos agora dourados.

         - Já estava ficando muito chato. – Disse a legista, no mesmo tom alegre e tranquilo que sempre usava.

         Amaryllis sentia-se perdida, revendo tudo que acontecera desde que iniciara a investigação no dia anterior e tentando entender como tudo chegara até ali.

         - Quem... O que é você? – Perguntou séria, novamente expondo suas garras.

         A outra mulher apenas riu.

         - Não consegue deduzir sozinha, exterminadora? – Falou debochada, umedecendo o lábio superior com a língua ao final.

         Permitindo que ela notasse que era escura e bifurcada. A meio-licantropo arregalou os olhos.

         - Succubus. – Murmurou para si mesma e a outra voltou a rir, agora mais alto. Olhou para o médico morto ao seu lado, a expressão de surpresa eternizada no rosto bonito. – Mas como? O que? Foi você quem matou as mulheres!

         - Nossa, e você se considera uma boa detetive! – Provocou.

         - Mas não faz nenhum sentido!

         - Não faz? – Repetiu a criatura, andando tranquilamente até a mesa e sentando-se sobre ela, cruzando as pernas enquanto tomava um longo gole da bebida abandonada pelo médico. – O que não faz sentido? Eu me disponho a ajudar essas mulheres a se libertarem, a enxergarem o seu verdadeiro potencial a descobrirem a própria força e elas me agradecem se envolvendo com um lixo como este canalha!

         - Então você as liberta e quando elas se recusam a cumprir suas ordens você as mata? – Amaryllis sequer conseguia acreditarem tal lógica absurda.

         - Eu as amei e elas me trariam, então eu fiz com que se matassem. – Concluiu, finalizando o copo de uísque. – O mundo pode me agradecer por quatro idiotas a menos respirando.

         - Quatro... Você não mandou Lívia matar aquelas mulheres?
         Dessa vez o rosto da Succubus assumiu uma expressão de desgosto.

         - Eu jamais faria isso, Lívia foi a pior das traições. Ela matou duas servas minhas. – A meio-licantropo a olhava, sem entender o que ela dizia, fazendo com que a falsa médica voltasse a rir, sem humor. – Jamais quis que as garotas morressem, mas nenhuma das três fez o que eu queria. Todas se recusaram a matar esse filho da puta. – Apontou para o cadáver do médico. – Lívia então, quando lhe propus que o fizesse, ela se revoltou e tentou fugir. Minhas servas foram atrás dela e você já sabe o resto.

         Era tudo tão absurdo, que se tornava difícil de acreditar. Tudo tão brutal e estúpido.

         - Você me fez acreditar que ele era o culpado, na esperança de que eu o matasse.

         - Sim, mas mesmo você se mostrou incompetente para isso. – Respondeu Ana, parecendo realmente irritada.

         - Por que você queria tanto matar este homem?

         - Por quê? – Ana repetiu, rindo ruidosamente, chegando a jogar a cabeça para trás. – Porque eu odeio homens filhos da puta que acham que podem controlar as mulheres, mas odeio ainda mais vadiazinhas fracas, que os deixam fazer isso!

         - Quer dizer que você diz ter libertado essas mulheres? – Amaryllis questionou, sentindo a terceira forte onda de desgosto do dia. - As livrou de todos os grilhões machistas que as aprisionaram a vida inteira e então as tornou livres, certo? Livres para fazerem o que VOCÊ julgasse certo, porque caso contrario as matava! – Foi a vez dela sorrir com deboche, vendo a expressão vitoriosa da succubus e tornar uma careta de fúria. – Eu pensava que ele era a criatura mais desprezível que encontraria nesta cidade.

         - Não venha com essa, Amaryllis Napello, meio lobisomen e exterminadora. Você é a última pessoa que pode me dar um discurso sobre conduta! – Exclamou Ana, pulando da mesa e se colocando frente a frente com a exterminadora.

         - Com base no que diz isso?

         - No que?! Você é a maior hipócrita da história, Amaryllis!

         Sem se conter, segurou a falsa médica pelo pescoço e a prensou contra a parede, fazendo com que sua cabeça batesse no concreto duro e sorrindo ao ver um filete de sangue escorrer no canto dos perfeitos lábios.

         - Não ouse me chamar de hipócrita, sua vadiazinha egoísta!

         A Succubus segurou o pulso da exterminadora com as duas mãos, tentando se soltar sem sucesso. Incapaz de medir forças com a outra, porém isso não a impediu de continuar a falar.

         - Mas você é exatamente isso. A meio lobisomen que caça monstros, sendo que é isso o que é! Não importa o quanto finja ser humana, eles jamais te reconhecerão como uma, porque você é um monstro, uma patética mestiça, mas, ainda sim, um monstro! Que luta contra os próprios instintos e deixa de fazer o que tem vontade pra se adequar a suja moral humana, hipócrita!

         As palavras doíam como agulhas penetrando nos pontos fracos de Amaryllis, enchendo-a de fúria. Seu desejo era retalhar Ana com suas garras e ouvi-la gritar, mas não lhe daria esse prazer, o prazer de provar que tinha razão. Ao invés disso sorriu, apertando mais a mão que a segurava pelo pescoço, satisfeita em vê-la engasgar.

         - Você esta certa, eu tenho instintos e desejos ligados ao meu sangue paterno, as vezes minha maior vontade é deixá-los aflorarem e agir sem culpa. Mas eu sou livre, Ana, livre para escolher como agir, quais impulsos ceder ou não. Isso que você não entende; ser livre não é simplesmente fazer o que tem vontade mais decidir quando e quais vontades realizar. Assim como aquelas garotas eram livres para escolherem ser o que quisessem, mesmo que isso não fosse o que você entendia por liberdade! – A succubus se debatia, sem conseguir respirar direito. – E agora, eu quero ceder a minha parte lobisomen. –Finalizou, apertando a mão até ouvir o pescoço se quebrar, assistindo o desespero crescer nos olhos de Ana, até que a vida os deixa-se completamente.

         Deixou o consultório sentindo-se cansada e sem a sensação de vitória que imaginava, mas estranhamente satisfeita.

         Não era o seu melhor caso, mas pelo menos as famílias teriam a tranquilidade de saberem o real motivo das mortes de suas filhas e não haveria novas vítimas. Pelo menos não da succubus Ana, porque Amaryllis sabia que o que movera a revolta da criatura, a permitira seduzir aquelas mulheres fragilizadas e ter tanto poder sobre elas, produzia novas vítimas todos os dias.

         Entregou o relatório, sem disposição para ouvir o que quer que seu contratante lhe dizia e foi embora de Lagoa Rósea no final da tarde do dia seguinte, deixando para trás um pôr-do-sol de tons rosados, que parecia debochar de todas as tragédias escondidas sobre a perfeita cidadela romântica, onde mulheres eram criadas para serem heroínas de romances melosos ou morrerem tentando.

Fim.