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Só queria sentir sua dor em paz, será
que era tão difícil? Não tivera uma noite tranquila nos últimos 15 dias.
Constantemente atormentada por pesadelos onde assistia, incapaz de se mover ou
gritar, aldeões sem face enforcarem uma pequena menina cega e então seguirem em
um tétrico cortejo funerário, como se não fossem eles os próprios assassinos.
Falhara e nada que dissessem poderia
convencê-la do contrário. Marcos bem tentara:
- Não tem sentindo continuar remoendo
isso. – Ele falou, fixando os profundos olhos escuros nos dela, parecendo capaz
de ler todos os segredos de sua alma.
A exterminadora desviava o olhar para a
caneca de cerveja e a esvaziava em um gole. Só queria ficar sossegada.
Depois do caso do Cavalo das Águas, na
pequena vila de pescadores no Reino Sul, levara três dias para se recuperar dos
ferimentos físicos e ainda não se recuperara dos traumas mentais.
As palavras do monstro sobre como era
carente e fraca, assim como a imagem da menina sacrificada pelos aldeões,
assombravam seus sonhos.
Seguiu para a estalagem Flecha de Prata,
na fronteira entre os Reinos Sul e Oeste, sua terra natal. Embora não gostasse
de estalagens de exterminadores de modo geral, ali era o único local que podia
chamar de casa.
Marcos a conhecera quando era criança
ainda, viajando com sua mãe. Ele foi um dos únicos que não a olhou diferente
por ser o que era, mesmo sendo um exterminador aposentado, e a estalagem lhe
pertencia.
Depois de uma semana de insistência,
Amaryllis cedeu, finalmente aceitando ouvir o caso.
Lagoa rósea era uma cidadela próxima à
estalagem, que recebera este nome devido ao lago ao entorno do qual se
desenvolvera, onde algas especiais deixavam a água num suave tom rosa.
Era conhecida como um local pacífico e
bucólico, destino para casais apaixonados e em lua-de-mel, com todos os clichês
adocicados que este tipo de ambiente pode proporcionar.
Cinco garotas tinham morrido na cidade,
três suicidas, sendo que uma delas havia matado mais duas, antes de tirar a
própria vida. Seu ex-noivo, frustrado com o descaso das autoridades locais,
decidiu contratar um exterminador para lidar com o caso. Convencido da
existência de influência não-humana.
Quando Marcos descreveu o caso, com um
pequeno sorriso sarcástico, a meio-licantropo teve vontade de afundar a cabeça
dele no tampo de madeira da bancada do bar. Era o tipo de caso que envolvia uma
carga emocional que não queria lidar no momento, arranhava muitas de suas
feridas... E era exatamente por isso que ele insistira que pegasse.
Com as reservas do pagamento do último
caso no fim, não teve muita escolha.
Encontrou o homem que a contratara em
sua casa, no centro da cidade. O jovem, franzino, tinha a pele em um tom
acinzentado doentio, os olhos inchados e opacos, vermelhos de tanto chorar e os
cabelos castanhos despontando para todos os lados. Sua noiva falecera havia
apenas cinco dias.
Quando se apresentou, ele não teceu
qualquer comentário sobre sua clara herança inumana. Fosse por não se importar
ou estar muito deprimido para ligar, era sempre um ponto positivo quando
acontecia.
- Lívia era a garota mais doce que se
pode imaginar! – O ex-noivo falou com a voz embargada. Mostrando uma pequena
foto em preto e branco da jovem, em um medalhão. – Nunca faria mal a ninguém!
Observando a imagem da vítima,
Amaryllis acreditava. A garota parecia tão pequena e frágil, que não deveria
conseguir machucar alguém, ainda que quisesse.
- Me diga o que aconteceu.
- Ela começou a mudar há uns dois meses.
Nunca entendi o motivo, mas ela parecia desinteressada em tudo que sempre
amou...
- Você inclusive. – A exterminadora não
conseguiu se impedir de dizer.
O homem engasgou, levando alguns
segundos para tornar a falar:
- Ela começou a se vestir de um modo
estranho, com roupas impróprias para uma mulher direita! – Amaryllis ergueu as
sobrancelhas, cruzando as pernas de modo a friccionar as calças de couro preto e
ecoar um som desagradável no ambiente. A sola plana do coturno virada
diretamente para o homem, que desviou o olhar. – Quando tentei chamar sua atenção,
riu na minha cara e falou que tinha o direito de fazer o que quisesse!
Dessa vez teve a presença de espírito
de permanecer em silêncio, mordendo o lábio inferior para conter qualquer
réplica sarcástica.
- Em suas duas últimas semanas de vida,
estávamos mais afastados do que nunca. Ela não respondia minhas mensagens, não
vinha me visitar e nunca estava em casa quando ia visitá-la. – Continuou. – No
dia anterior a sua morte, me disseram que estava em uma taverna e eu fui
confrontá-la. Ela estava cercada por mulheres que nunca tinha visto antes e
quando pedi que fosse comigo para casa, debochou de mim e disse que não
tínhamos mais nada, que... – Engasgou, deixando que algumas lágrimas
escapassem. – Que tinha encontrado um homem de verdade e que não queria mais me
ver. Jogou o anel de noivado na minha cara e se virou para suas amigas, que
riam acompanhando toda a cena.
- Você deve ter se sentido muito
humilhado. – Ela comentou, não conseguindo se emocionar com a história.
- Eu me senti traído! – O homem exclamou,
deixando pela primeira vez transparecer sua raiva. – Lívia me traiu, se
transformou numa vadia da noite para o dia e jogou fora todos os anos que me
dediquei a ela! E então... Então...
- Ela matou outras duas mulheres e se
matou? – A exterminadora o cortou e assistiu seu contratante apenas acenar em
confirmação com a cabeça. – E você decidiu contratar meus serviços exatamente
por quê?
- Porque... Bem, porque deve haver
alguma explicação para essa mudança na minha doce Lívia! Alguma criatura
maligna deve tê-la possuído e corrompido sua pura alma!
- Ou ela simplesmente se libertou de
todas as amarras que colocaram sobre ela a vida inteira e você quer uma
desculpa para o seu orgulho ferido? – Não tinha intensão de ser cruel, mas
sabia que estava sendo.
- Ela matou duas pessoas!
- Alguém que teve seus desejos tolhidos
durante toda a vida, quando finalmente se liberta podem cometer loucuras. – As
palavras tinham um gosto amargo em sua boca. A pergunta “Falando em causa
própria?” ecoou no fundo de sua mente, em uma voz perturbadoramente similar a
de sua mãe.
O homem que a contratara, estava
olhando-a em silêncio. Chegou a abrir a boca algumas vezes, como se fosse dizer
algo, apenas para fechá-la em seguida.
Percebendo que havia cruzado uma linha
indevida, Amaryllis se encolheu e levantou, retomando a postura profissional.
- Bem, nada disso importa. Você me
contratou para investigar a morte da sua noiva e eu farei isso. Qualquer que
seja o resultado da investigação lhe informarei. – Concluiu, saindo da casa.
Sentia-se envergonhada por seu
descontrole. As atitudes do homem a irritaram bem mais do que deveriam e ela
sabia os motivos, ao mesmo tempo sempre que agia por impulso, lembrava de sua
mãe a censurando ou duvidando de sua capacidade de tornar-se exterminadora.
Adicionando mais um pouco de frustração, ao coquetel de emoções negativas que
inundavam sua mente.
Na primeira hora do dia seguinte, se
dirigiu para o necrotério, pois quanto mais rápido fosse, mais rápido poderia
sair de lá.
O hospital era um prédio de três
andares, simples e austero, a não ser pela fachada rosa, seguindo a cor da
maior parte da arquitetura da cidade. Nos fundos do primeiro andar, achou o
setor que procurava e foi atendida por uma sorridente médica, que destoava do
ambiente.
A jovem era pequena, mas, para
Amaryllis, a maior parte das pessoas, especialmente outras mulheres, eram. Com
curtos cabelos loiros, cacheados e grandes olhos cor de mel, que brilharam de
fascinação quando se apresentou como exterminadora.
- É uma tragédia sem precedentes o que
aconteceu com essas mulheres. As autoridades locais não sabem como agir, já que
na verdade isso é totalmente incomum por aqui.
- Suicídios? – Perguntou
desinteressada, assistindo a legista abrir as gavetas que ainda guardavam os
corpos das três últimas vítimas.
A vantagem de cidades era os geradores
de energia, que permitiam câmaras de resfriamento e reduziam o cheiro de
decomposição.
- Assassinatos. – Respondeu, em um tom
alegre desconcertante. – Suicídios de mulheres na verdade são bem comuns em
Lagoa Rósea.
Amaryllis parou de examinar o corpo da
primeira vítima, que contava com sete perfurações de faca espalhadas entre o
colo e o abdômen, para olhar diretamente para a médica.
- Eu não sabia disso.
- Poucas pessoas sabem. – Falou, dando
uma risadinha. – Não é muito bom para o turismo, né?
Não tinha sarcasmo ou deboche nas
palavras da mulher, apenas um assustador bom humor em tratar tal tema.
- Não, eu suponho que não... Por que
ocorrem tantos suicídios... – Parou para ler o nome da mulher bordado em seu
jaleco. – Ana?
A médica parou por um instante, levando
o dedo indicador aos lábios, em uma caricata expressão pensativa.
- Muita pressão, talvez? – Ela parecia
falar mais para si mesma. – Se você passa toda a vida em uma cidade que vive de
romance e sonhos, meio que todos esperam que tenha uma relação assim. As moças
são ensinadas desde cedo que a felicidade esta ligada a relacionamentos
duradouros e que casar é o caminho para viver bem. Quando atingem uma certa
idade, sem conseguirem ou estarem em vias de concretizar isso, elas se
desesperam e muitas decidem acabar com as próprias vidas.
- Não foi o caso dessa aqui. –
Amaryllis falou, apontando para o cadáver que reconheceu ser Lívia. – Ela tinha
um noivo completamente apaixonado por ela.
- Uhum. – Confirmou a legista, sem
parecer surpreendida pela informação. – As três garotas que se mataram tinham
relações estáveis.
Amaryllis lambeu o lábio superior, em
uma demonstração de nervosismo. Esta era mais uma informação nova.
- É por isso que as autoridades estão
tão perdidas, a situação foge totalmente do nosso normal.
Acenou a cabeça, confirmando que
compreendia e voltou a analisar os corpos. As mulheres assassinadas tinham seus
troncos marcados por profundas facadas, distribuídas sem planejamento,
demonstrando a fúria com que o crime foi praticado.
Lívia, porém, foi encontrada sentada
tranquilamente, com a cabeça dentro do forno. Uma morte suave e tranquila, que
destoava da assassina brutal.
Embora tivesse tentando evitar pensar
no lençol branco que cobria o corpo, a imagem embrulhando seu estomago ao
despertar lembranças desagradáveis, finalmente o reconheceu e removeu,
revelando a primeira grande pista de sua investigação.
Partindo de seu sexo, até o ventre e
sumindo por entre as coxas, diversas veias negras marcavam a pele agora
azulada.
- O que são essas marcas? – Perguntou,
sem olhar para a legista, que deu de ombros.
- Ninguém sabe dizer.
- Todas as garotas que se mataram
possuíam essas marcas?
- Sim, as três. – A tranquilidade de
Ana se tornara desagradável em um novo patamar.
- E como isso não consta em nenhum
relatório de autópsia?! – Amaryllis falou entre os dentes, esforçando-se para
não gritar.
Sabia que seus olhos deviam reluzir
como raios, mas a outra mulher não pareceu se abalar.
- O doutor Eduardo decidiu não colocar,
disse que devia se tratar de alguma droga nova e não quis expor essas mulheres
ainda mais.
- Com que autoridade este idiota decide
o que consta ou não nos relatórios de autópsia?!
- Com a autoridade de médico chefe,
responsável pelo necrotério deste hospital. – Respondeu uma voz grave, vinda da
porta de entrada da câmara de resfriamento.
Seu dono era um homem alto, de cabelos
castanho escuros, rosto quadrado, com barba por fazer e quentes olhos castanhos,
com pesadas olheiras. Toda a sua postura denotava força e dignidade, mesmo com
os claros sinais de cansaço, demandando respeito.
Amaryllis teve vontade de arrancar seu
pequeno sorriso de escárnio com um tapa.
- A sua irresponsabilidade pode ter
provocado um grave atraso na investigação dessas mortes! – Falou, erguendo-se
de onde tinha se inclinado para examinar as vítimas. – Se essas marcas
constassem no relatório da primeira morta, talvez as outras estivessem salvas.
Amaryllis sentiu a raiva crescer em seu
coração, assistindo ao legista dar de ombros.
- Ninguém podia salvar essas garotas,
porque elas queriam se matar. – Falou lentamente, como se explicasse algo a uma
criança.
- Talvez. – Retrucou a exterminadora,
mordendo a parte interna das bochechas para conter a irritação. – Porém diante
dessas marcas não podemos afirmar com certeza. Afinal podem ser indicação da
influência de alguma criatura ou feitiço sobre essas mulheres.
- Por que pensaríamos isso? – Insistiu em
perguntar, fazendo pouco das palavras dela.
- Porque, doutor... – O título veio com
uma carga extra de deboche, acompanhado de um sorriso cínico por parte da
meio-licantropo. – Não sei quando foi a última vez que viu uma mulher viva sem
roupa, mas essas veias negras não são comuns.
- Se for um convite, aceito te ver sem
roupa, exterminadora.
Uma grande onda de náusea subiu pela
garganta de Amaryllis, deixando um gosto amargo em sua boca, ao assistir o
médico olhá-la de cima a baixo, enquanto dava a resposta vulgar.
O homem sorria, inabalado, fazendo com
que ela se sentisse pequena e vulnerável. Tinha vontade de socá-lo, mas não
podia, não sem perder a razão.
Sentiu-se desconectada do mundo por alguns
segundos, perdida nos próprios conflitos, e quando retornou notou que o médico
falava com Ana.
- Quando terminar de redigir meu último
relatório, pode ligar para minha esposa e avisar que não vou jantar em casa
hoje?... Obrigada, você é a melhor! – Falou, piscando um olho e jogando um
beijo para a médica.
Amaryllis lhe deu um olhar inquisitivo,
ao que ela apenas deu de ombros.
- Não vale a pena se irritar com essas
coisas. – Respondeu, com o doce sorriso inabalável.
Uma nova onda de revolta queimou o
peito da exterminadora, que deixou o necrotério a duros passos.
O médico Eduardo não era o primeiro
homem babaca que encontrara em seu caminho e, infelizmente, duvidava que fosse
ser o último. Machista, descrente de suas habilidades como investigadora, tudo
isso seria fácil de lidar em dias comuns. Porém não engolia como alguém podia
ser tão arrogante e irresponsável. Tendo omitido aquelas informações, ele se
tornara cumplice do que quer tivesse influenciado aquelas mulheres a se
matarem. Se esta criatura existisse.
Voltou à pequena pousada em que havia
se hospedado, dado a inexistência de estalagens de exterminadores na cidade. O
quarto era irritantemente romântico e a recepcionista parecia julgá-la com o
olhar sempre que passava pela entrada, mas servia ao propósito.
Releu os relatórios das autópsias,
sentindo a raiva arder em suas entranhas, ao lembrar da expressão debochada do
legista e a passividade da outra médica.
Questionava se algo mais havia sido
omitido, mas não parecia ser o caso.
Não sentira nenhum cheiro incomum nos
corpos, nada que denotasse contato das vítimas com alguma substância alteradora
da consciência, que conhecesse, e os relatórios confirmavam isso.
Sentindo a cabeça doer, decidiu parar
por aquele dia e buscar o bar mais próximo onde pudesse beber até dormir, com
esperança de as grandes quantidades de álcool bloquearem os pesadelos. A
premissa de poder se embebedar, sem o olhar recriminatório de Marcos sobre si
era animadora.
O bar em que parou era próximo a
pousada e seguia o padrão açucarado do resto da cidade, mas tinha uma tequila
de relativa qualidade, a um preço justo, então ia servir.
Sentada junto ao balcão, virava o
terceiro shot de bebida, quando percebeu alguém sentar ao seu lado. Virou-se,
encontrando Ana a olhá-la com seu sorriso irritante.
- Ainda irritada com o doutor Eduardo?
– Perguntou, olhando os copos vazios na acumulados na frente da exterminadora.
Amaryllis apenas se virou de volta para
a parede de bebidas atrás do bar, sinalizando que queria mais uma dose, antes
de responder sem tornar a olhá-la.
- Não seja idiota, não bebo por culpa
daquele babaca, bebo por causa desse maldito caso infeliz, que outro babaca me
encheu até eu aceitar!
A legista riu, sinalizando ao bartender
que queria o mesmo que ela estava tomando. Amaryllis ergueu uma sobrancelha,
vendo a médica de aparência delicada virar a bebida como se não fosse nada, mas
preferiu não comentar.
- Homens tendem a ser bem desagradáveis
de vez em quando, né? – Comentou a legista.
Sem interesse em conversar com qualquer
pessoa, a meio-licantropo permaneceu apreciando sua bebida em silêncio,
sentindo lentamente a dormência começar a se espalhar pelas pontas de seus
dedos.
- O doutor Eduardo não é tão mal assim.
– Continuou Ana, inabalada, dessa vez arrancando uma meia risada sarcástica da
exterminadora. – Realmente não é! – Reafirmou, virando a segunda dose. – Pode
ser meio bruto e ter dificuldades em se manter fiel, mas ele realmente trata
bem as mulheres com quem se relaciona e...
- Porra! – Exclamou, Amaryllis, sem
vontade de se conter após o quinto shot. – Você esta tão apaixonada por este
filho da puta.
- Nã-não estou! – A médica afirmou
categórica, com as bochechas
vermelhas.
- Ah, sim, você esta! – Respondeu
Amaryllis, com uma nova risada sarcástica, sentindo um prazer cruel em quebrar
a imagem tranquila da legista. – Caidinha por um completo canalha!
- Você não sabe do que esta falando. –
Retrucou, encolhendo-se no banco.
- Deixa eu adivinhar: Aposto que ele te
seduziu e comeu em sua própria sala, no necrotério. Prometeu que se divorciaria,
disse que a amava e várias outras coisas bonitas?
- Não. – A médica falou, agora com um
fio de voz, que nenhuma pessoal normal ouviria. – Ele nunca fez nada disso... –
Parou de falar, engasgando e Amaryllis percebeu uma fina lágrima escorrer no
canto de seu olho esquerdo, o cheiro salgado trancando sua garganta. – Ele
nunca olhou para mim.
Um terrível sentimento de culpa tomou a
meio-licantropo, que percebeu ter ido longe demais. Sentia-se uma completa
idiota por ter atacado a outra mulher daquela forma, mais uma culpa para
persegui-la aquela noite.
- Ei... Também não precisa chorar.
- Não, você tem razão. – Continuou Ana,
cortando-a. – Eu sou realmente patética por alimentar qualquer esperança em me
relacionar com um homem casado... Nossa, eu sou mesmo uma vadia.
Agora a mulher chorava de verdade e
Amaryllis sentia-se tão culpada, mesmo sabendo que não era para tanto, que
tinha vontade de bater a cabeça na parede até calar todas as vozes de autocondenação:
- Ok, também não é para tanto...
- Eu sou tão ruim... – Ana tornou a
cortá-la. - Que cheguei a ficar feliz quando soube que a Lívia morreu!
Ok, essa ultima afirmação não fazia
qualquer sentido e mesmo sob efeito da bebida, Amaryllis soube reconhecer que
havia algo errado.
- O que a morte da Lívia tem haver com
a história, Ana? – Perguntou, segurando o legista pelos braços e olhando-a
diretamente nos olhos.
A mulher tremeu, dividida entre a
surpresa e as lágrimas, antes de responder:
- Lívia era amante do doutor Eduardo.
Chegando a arregalar os olhos de
surpresa, a exterminadora chegou a apertar com mais força do que devia os
braços da legista, antes de finalmente soltá-la.
- Espera, então Eduardo era o tal
“homem de verdade” pelo qual Lívia trocou o noivo! – Fosse pelo álcool ou pela
surpresa, estava difícil para Amaryllis absorver a informação. – Foi ele que a
incentivou a mudar e tudo mais?
Soltou a legista, que se encolheu
contrariada e desviou o olhar.
- Não sei se ele pode ser culpado pela
mudança dela... Mas é sempre assim, conviver com ele deixa as mulheres mais
bonitas, seguras de si mesmas ou algo do tipo. Elas parecem brilhar.
Sentindo-se cada vez mais sóbria,
Amaryllis sinalizou o pedido de duas novas doses. Convencida de que as
informações da legista eram importantes para o caso, estava determinada a
embebedá-la até descobrir tudo que precisava.
- Todas as mulheres, então, hm? Quem
eram elas? As outras vítimas?
Ana vacilou por um instante e Amaryllis
lhe empurrou um novo copo, que virou, parecendo ter reencontrado sua voz no
fundo.
- Não, bem... Não posso dizer, há
boatos de que ele saiu algumas vezes com a Emília, mas Débora era sua irmã!
Idiota, mil vezes idiota! a vontade de
bater a própria cabeça em uma superfície dura voltou com força total. Como
pudera deixar um detalhe tão relevante escapar?!
- Então todas as vítimas estavam
ligadas a ele? – Perguntou em tom de afirmação, só precisava que fosse
confirmado.
- Não exatamente. – Respondeu Ana, com
as bochechas coradas pelo álcool. - Ele não conhecia as duas garotas que Lívia
matou, até onde eu sei.
Claro, as meninas assassinadas. Elas
eram as peças destoantes do quebra-cabeças. Porém não havia problema, pois todo
o mais encaixava. Iria confrontar o médico, descobrir como ele controlou as
três garotas e o faria confessar o motivo de levar Lívia a cometer
assassinatos. Assim resolveria o caso.
Levantou, deixando cinco moedas
douradas sobre o balcão, o suficiente para pagar suas bebidas e as da legista,
e saiu sem dizer mais nada.
A excitação era tão grande, que sentia
seu coração pulsar acelerado, o som das batidas abafando os do ambiente ao
redor. Estava tão certa de seu palpite, que sua vontade era farejar o médico
até sua residência e resolver tudo. Porém havia meios mais simples.
Uma rápida ligação ao hospital,
identificando-se como exterminadora e inventando algo sobre perigo iminente e
estava com o endereço em mãos.
Para sua surpresa, a visita ao local
foi um fracasso. Teve que se esgueirar parar ultrapassar o porteiro do elegante
prédio e chegar ao apartamento, mas para sua surpresa, ele se encontrava em
estado caótico.
Uma grossa camada de poeira cobria as
superfícies, diversos móveis estavam jogados pelo ambiente e os quadros da
parede tortos. Parecia que uma grande luta ocorrera no local, porém não havia
qualquer cheiro de sangue ou algo similar que confirmasse a hipótese.
Repassando os fatos ocorridos, tentou
descobrir se havia deixado passado algum detalhe... Ate que se lembrou “avise a
minha esposa que voltarei tarde hoje”, ele dissera mais cedo para Ana, enquanto
investigava as mortas.
Não fazia sentido, o apartamento
parecia abandonado há dias, sem que ninguém entrasse ali.
Bem, era mais uma coisa a questionar
quando conseguisse capturá-lo. Correu para o hospital, torcendo para ainda
encontrá-lo lá dentro.
Mesmo sob o cheiro de decomposição e
química, o odor de suor e uísque barato se destacava, quando entrou no
necrotério. A porta da sala do consultório estava trancada, mas foi fácil
arrombá-la.
Lá dentro o cheiro se intensificara
beirando o insuportável e Amaryllis levou dois segundos para se recompor,
encontrando Eduardo praticamente debruçado sobre sua mesa, com a mão firmemente
agarrada a um copo cheio e uma garrafa quase vazia pousada na lateral da mesa.
Quando ergueu o olhar, seus olhos estavam
nublados pelo álcool, ainda sim tentou uma versão bêbada do sorrisinho
arrogante que usara mais cedo.
- Exterminadora, você voltou para
cumprir a promessa de me deixar te ver pelada? – O médico levantou cambaleante,
parecendo sequer saber o que dizia.
Perdendo o equilíbrio, tornou a se
apoiar na mesa, rindo de leve.
- Não banque o idiota. O que fez com
aquelas garotas?!
A raiva que recuara diante da patética
imagem do homem, voltou a arder com força em seu peito diante das palavras e
Amaryllis falou entre dentes, com os olhos faiscando.
- Não vamos falar do passado, não
quando o presente pode ser tão mais interessante.
Enquanto falava, se esforçou a ficar de
pé nas próprias pernas, mas na tentativa de ir até a mulher, se desequilibrou
em praticamente se jogou em cima dela.
A meio-licantropo não hesitou em erguer
o joelho com força, acertando o abdômen do homem em cheio e fazendo-o cair no
chão em posição fetal, sem qualquer resistência.
Eduardo chorava, a bebida levando
embora qualquer resquício de orgulho ou amor próprio. Era uma cena ridícula,
mas não restava dúvida que se tratava de um simples humano ou o arremedo de um.
- Vadias, todas vadias! Todas as
mulheres só nos machucam. – murmurava, abraçando o local onde fora atingido,
enquanto chorava ruidosamente.
- Por isso decidiu matá-las? –
Amaryllis sentia-se desconfortável diante da cena a sua frente, não era como
tinha imaginado confrontá-lo.
O médico apenas passou a chorar com
mais intensidade.
- Eu não matei ninguém! Eu juro que não
matei ninguém! Elas... Elas se mataram apenas para me torturar, elas não
pensaram em mim!
A imagem do homem era desconcertante e
fazia com que ela sentisse diversos nós se formarem em seu interior, aquele
homem era tão pequeno, fraco e vazio, que lhe provocava a mais pura pena.
Chegou a cogitar matá-lo, apenas para encerrar aquela situação, para na
sequência notar que simplesmente não se importava o suficiente para valer o
esforço.
- Esta dizendo que não teve culpa na
morte de sua irmã?
- Não, não... Eu amava a Débora! Minha
irmãzinha, ela era tão meiga, eu só queria protegê-la! Diziam que era muito
duro com ela, não a deixava se divertir, mas não podia arriscar que achassem
que ela não era uma mulher direita, que ela era uma qualquer, mulher de vida
fácil, que ela era...
- Como as mulheres com quem você
costumava se relacionar? – Completou, sentindo uma nova onda de repulsa por
aquele homem. – Como Emília?
Uma nova leva de soluços doloridos
deixou a boca do médico.
- Ah, Emília, ela era tão boa para mim!
Mas ela queria que eu largasse minha esposa para ficar com ela. Eu, um médico!
Deixar minha esposa, para me casar com a filha da passadeira. Uma garota negra,
ainda por cima, pode imaginar?!
Ele forçou um riso fraco, sentando-se
no chão, largado como um boneco de pano.
Uma nova vontade de agredir Eduardo
tomou a exterminadora, mas sentia nojo só de imaginar tocá-lo.
- E Lívia? – Perguntou em uma voz
isenta de emoções.
Um sorriso que poderia ser considerado
doce em qualquer outra pessoa tomou as feições macilentas do bêbado.
- Lívia era um anjo! Tão pura! Que
homem poderia ter resistido uma mulher
tão linda e intocada?
- Ela tinha um noivo. – Falou, sem
realmente se importar, puxando-o de volta de seus pensamentos.
- Um merdinha! Lívia precisava de um
homem de verdade!
Amaryllis deu uma risadinha debochada,
deixando que todo seu desprezo refletisse em sua expressão, satisfeita em vê-lo
desviar o olhar.
- E a sua esposa? – Precisava saber se
devia se preocupar com mais uma vítima perdida pela cidade.
- Depois que Lívia morreu, ela foi
embora. Eu fiquei destruído e ela disse que não suportava mais, que tolerava as
traições, mas que me ver chorar pelas minhas amantes era demais e foi embora há
cinco dias.
Tendo conseguido alcançar a garrafa no
canto da mesa, Eduardo voltou a beber, enquanto novas lágrimas grossas corriam
de seus olhos.
- Por que não falou sobre as marcas nos
relatórios?
- Como poderia?! – O homem quase
gritou. – Eu sou médico! Elas eram minhas mulheres, minha irmã, minhas amantes,
como eu poderia ter deixado isso passar?! Como explicar aos colegas? Seria o
meu fim!
- Então para manter seu orgulho
intacto, você simplesmente omitiu uma informação crucial sobre as mortes. –
Falou, tendo certeza de que se encontrava em frente a um dos seres mais
desprezíveis que já encontrara em sua vida.
- Me mate. – Pediu em um fio de voz.
Amaryllis se curvou sobre ele, apoiando
as mãos, com as longas garras a mostra nas laterais se sua cabeça e falou com
um sorriso feroz, seus caninos expostos e sua voz rouca, demonstrando toda a
sua genética ancestral.
- Não vale a pena. – Teve vontade de
rir, vendo o homem se encolher de medo.
Já estava ereta novamente e pronta para
se virar e sair, disposta a continuar a investigação no dia seguinte. Quando o
som do tiro invadiu seus ouvidos, a bala passou zunindo na lateral de seu rosto
e se alojou perfeitamente na testa do médico.
Virou-se para encontrar uma sorridente
Ana a encará-la, com a arma ainda em punho.
Não entendia como podia ter deixado de
notar a aproximação dela, até notar o brilho bruxuleante de seus olhos agora
dourados.
- Já estava ficando muito chato. –
Disse a legista, no mesmo tom alegre e tranquilo que sempre usava.
Amaryllis sentia-se perdida, revendo
tudo que acontecera desde que iniciara a investigação no dia anterior e
tentando entender como tudo chegara até ali.
- Quem... O que é você? – Perguntou
séria, novamente expondo suas garras.
A outra mulher apenas riu.
- Não consegue deduzir sozinha,
exterminadora? – Falou debochada, umedecendo o lábio superior com a língua ao
final.
Permitindo que ela notasse que era
escura e bifurcada. A meio-licantropo arregalou os olhos.
- Succubus. – Murmurou para si mesma e
a outra voltou a rir, agora mais alto. Olhou para o médico morto ao seu lado, a
expressão de surpresa eternizada no rosto bonito. – Mas como? O que? Foi você
quem matou as mulheres!
- Nossa, e você se considera uma boa
detetive! – Provocou.
- Mas não faz nenhum sentido!
- Não faz? – Repetiu a criatura,
andando tranquilamente até a mesa e sentando-se sobre ela, cruzando as pernas
enquanto tomava um longo gole da bebida abandonada pelo médico. – O que não faz
sentido? Eu me disponho a ajudar essas mulheres a se libertarem, a enxergarem o
seu verdadeiro potencial a descobrirem a própria força e elas me agradecem se
envolvendo com um lixo como este canalha!
- Então você as liberta e quando elas
se recusam a cumprir suas ordens você as mata? – Amaryllis sequer conseguia
acreditarem tal lógica absurda.
- Eu as amei e elas me trariam, então
eu fiz com que se matassem. – Concluiu, finalizando o copo de uísque. – O mundo
pode me agradecer por quatro idiotas a menos respirando.
- Quatro... Você não mandou Lívia matar
aquelas mulheres?
Dessa vez o rosto da Succubus assumiu
uma expressão de desgosto.
- Eu jamais faria isso, Lívia foi a
pior das traições. Ela matou duas servas minhas. – A meio-licantropo a olhava,
sem entender o que ela dizia, fazendo com que a falsa médica voltasse a rir,
sem humor. – Jamais quis que as garotas morressem, mas nenhuma das três fez o
que eu queria. Todas se recusaram a matar esse filho da puta. – Apontou para o
cadáver do médico. – Lívia então, quando lhe propus que o fizesse, ela se
revoltou e tentou fugir. Minhas servas foram atrás dela e você já sabe o resto.
Era tudo tão absurdo, que se tornava
difícil de acreditar. Tudo tão brutal e estúpido.
- Você me fez acreditar que ele era o
culpado, na esperança de que eu o matasse.
- Sim, mas mesmo você se mostrou
incompetente para isso. – Respondeu Ana, parecendo realmente irritada.
- Por que você queria tanto matar este
homem?
- Por quê? – Ana repetiu, rindo
ruidosamente, chegando a jogar a cabeça para trás. – Porque eu odeio homens
filhos da puta que acham que podem controlar as mulheres, mas odeio ainda mais
vadiazinhas fracas, que os deixam fazer isso!
- Quer dizer que você diz ter libertado
essas mulheres? – Amaryllis questionou, sentindo a terceira forte onda de
desgosto do dia. - As livrou de todos os grilhões machistas que as aprisionaram
a vida inteira e então as tornou livres, certo? Livres para fazerem o que VOCÊ
julgasse certo, porque caso contrario as matava! – Foi a vez dela sorrir com
deboche, vendo a expressão vitoriosa da succubus e tornar uma careta de fúria.
– Eu pensava que ele era a criatura mais desprezível que encontraria nesta
cidade.
- Não venha com essa, Amaryllis
Napello, meio lobisomen e exterminadora. Você é a última pessoa que pode me dar
um discurso sobre conduta! – Exclamou Ana, pulando da mesa e se colocando
frente a frente com a exterminadora.
- Com base no que diz isso?
- No que?! Você é a maior hipócrita da
história, Amaryllis!
Sem se conter, segurou a falsa médica
pelo pescoço e a prensou contra a parede, fazendo com que sua cabeça batesse no
concreto duro e sorrindo ao ver um filete de sangue escorrer no canto dos perfeitos
lábios.
- Não ouse me chamar de hipócrita, sua
vadiazinha egoísta!
A Succubus segurou o pulso da
exterminadora com as duas mãos, tentando se soltar sem sucesso. Incapaz de
medir forças com a outra, porém isso não a impediu de continuar a falar.
- Mas você é exatamente isso. A meio
lobisomen que caça monstros, sendo que é isso o que é! Não importa o quanto
finja ser humana, eles jamais te reconhecerão como uma, porque você é um
monstro, uma patética mestiça, mas, ainda sim, um monstro! Que luta contra os
próprios instintos e deixa de fazer o que tem vontade pra se adequar a suja
moral humana, hipócrita!
As palavras doíam como agulhas
penetrando nos pontos fracos de Amaryllis, enchendo-a de fúria. Seu desejo era
retalhar Ana com suas garras e ouvi-la gritar, mas não lhe daria esse prazer, o
prazer de provar que tinha razão. Ao invés disso sorriu, apertando mais a mão
que a segurava pelo pescoço, satisfeita em vê-la engasgar.
- Você esta certa, eu tenho instintos e
desejos ligados ao meu sangue paterno, as vezes minha maior vontade é deixá-los
aflorarem e agir sem culpa. Mas eu sou livre, Ana, livre para escolher como
agir, quais impulsos ceder ou não. Isso que você não entende; ser livre não é
simplesmente fazer o que tem vontade mais decidir quando e quais vontades
realizar. Assim como aquelas garotas eram livres para escolherem ser o que
quisessem, mesmo que isso não fosse o que você entendia por liberdade! – A succubus
se debatia, sem conseguir respirar direito. – E agora, eu quero ceder a minha
parte lobisomen. –Finalizou, apertando a mão até ouvir o pescoço se quebrar,
assistindo o desespero crescer nos olhos de Ana, até que a vida os deixa-se
completamente.
Deixou o consultório sentindo-se
cansada e sem a sensação de vitória que imaginava, mas estranhamente
satisfeita.
Não era o seu melhor caso, mas pelo menos
as famílias teriam a tranquilidade de saberem o real motivo das mortes de suas
filhas e não haveria novas vítimas. Pelo menos não da succubus Ana, porque
Amaryllis sabia que o que movera a revolta da criatura, a permitira seduzir
aquelas mulheres fragilizadas e ter tanto poder sobre elas, produzia novas
vítimas todos os dias.
Entregou o relatório, sem disposição
para ouvir o que quer que seu contratante lhe dizia e foi embora de Lagoa Rósea
no final da tarde do dia seguinte, deixando para trás um pôr-do-sol de tons
rosados, que parecia debochar de todas as tragédias escondidas sobre a perfeita
cidadela romântica, onde mulheres eram criadas para serem heroínas de romances
melosos ou morrerem tentando.
Fim.