sábado, 29 de abril de 2017

O Colar de Talassa.



Imagem localizada em banco de imagens gratuitas e editada por mim.

Para dentro do oceano,
grandes ondas vão arrastar
A cidade dourada,
de verde e prata mar.

Desfrute alegremente
a sereia a cantar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar!

Era uma lenda antiga, uma cantiga de criança tenebrosa, que os pais ensinavam a seus filhos a fim de que se comportassem direito.

Pelo menos foi o que sempre pensara.

Agora assistindo, encharcado pela tempestade, as grandes ondas que se erguiam como mãos negras, cavando seus dedos distorcidos cada vez mais para dentro da costa, percebia como havia sido tolo.

Flauta d’água era uma famosa cidade turística, em uma ilha paradisíaca ligada ao continente apenas por uma moderna ponte metálica prateada, que sempre pareceu ser etérea, como uma passagem para outro mundo.

A ponte era frágil demais, bastou uma onda bem direcionada e ela se partiu, isolando a ilha e impedindo a fuga de seus habitantes.

As histórias diziam que todo o dia ao amanhecer, se você estivesse em um dos diversos lugares de preservação da natureza da ilha, afastado dos centros comerciais barulhentos, era possível ouvir o canto de uma sereia, doce e suave como uma flauta hipnotizante.

Porém nunca acreditara nisso, nunca ouvira o canto e debochava daqueles que juravam ouvi-lo.

A maior atração de Flauta d’Água era um conjunto de ruinas a pouco menos de dois quilômetros da costa, onde se formara um incrível recife de corais, muito apreciado por toda a variedade de mergulhadores.

No centro das ruínas, acessível apenas para mergulhadores mais experientes com equipamento especial, se encontrava a estátua de Lígia. Conhecida como a sereia guardiã da ilha, cujo a voz seria ouvida nos amanheceres.

Os mergulhadores juravam que em seu colo repousava um incrível colar todo cravejado de pérolas e águas marinhas, com um imenso pingente de ouro na forma de uma concha que brilhava como um pequeno sol, apesar das águas profundas; O colar de Talassa. Diziam que tal brilho era o responsável por nunca ninguém ter conseguido tirar uma foto nítida da estátua e assim a lenda se perpetuava.

Contra todos os avisos, debochara. Riu quando Cassandra lhe garantiu que a lenda era real, que seu pai havia visto a estátua quando mais novo e a descreveu em detalhes. Sua amiga era sempre tão dada a acreditar em misticismos baratos.

Porém ele, não. Rodrigo sempre foi um cético, desde os 05 anos quando havia criado uma armadilha para capturar o Papai Noel e, tendo ficado de tocaia, viu sua mãe colocando os presentes na árvore de natal.

Quando a empresa Rota da Felicidade anunciou o concurso, garantindo que pagaria em dobro o valor da peça, para o mergulhador que conseguisse encontrar e trazer a joia submersa para eles, Rodrigo ousou cogitar a hipótese da lenda ser real. Não apenas isso, seria também sua grande chance de juntar o dinheiro necessário para deixar a ilha e iniciar uma vida no continente.

Diversos moradores se manifestaram contra tal concurso, dizendo ser uma blasfêmia. Devia tê-los ouvido.

Muitos mergulhadores vieram a cidade para tentar e falharam. Diziam ter sido arrastados por correntezas vindas de lugar nenhum, falhas inexplicáveis em seus equipamentos e, até mesmo, um que jurou ter visto a expressão da estátua se transformar em uma terrível carranca e ouviu uma voz feminina gritando que fosse embora.

Nada disso serviu para dissuadir Rodrigo da ideia, pelo contrário, apenas alimentou sua crença em ser o único capaz de cumprir o desafio.

Tendo trabalhado desde a pré-adolescência como assistente do pai de Cassandra, ajudando-o em suas pesquisas e mergulhos, conhecia o recife de corais como ninguém, como mudavam as marés e as correntes. Assim, mesmo sem nunca ter ousado mergulhar tão fundo, sabia ser capaz.

No dia marcado, uma pequena plateia de conhecidos se reuniram na costa. Menos Cassandra, que tinha tentado fazê-lo desistir uma última vez, na noite anterior e se recusara a ser testemunha da pior estupidez que ele já havia cometido. Palavras dela.

O céu estava completamente nublado, mas o mar permanecia calmo e liso como um espelho. O barco não teve qualquer problema em chegar aos recifes.

Checou o equipamento pela terceira vez, tendo certeza que nada poderia dar errado e mergulhou, sentindo o abraço gelado do mar cor de esmeralda.

Os primeiros pés foram tranquilos, estava acostumado a sensação. Porém quanto mais descia e a pressão aumentava, mais atento se tornava às batidas aceleradas de seu coração. Sentia um nó se formando na altura de seu estômago, mas associou aquilo a profundidade jamais experimentada.

Por duas vezes se viu pego por correntes que não deveriam estar naquele lugar, naquele momento, mas soube se desviar delas habilmente.

Finalmente, chegou a profundo centro das ruínas e arregalou os olhos, surpreendido, sentindo o ar lhe faltar.

Lá estava, no tamanho de uma pessoa adulta, a lendária estátua da sereia Lígia, o corpo talhado de modo tão perfeito na pedra, que parecia respirar e prestes a se mover a qualquer momento. Ou, pelo menos, essa era a ilusão causada pelo movimento das águas, tentou se convencer.

O rosto era fino e harmônico, os cabelos em cachos que pareciam flutuar ao redor do corpo perfeito, cada escama da cauda talhada a perfeição e os olhos pareciam carregar toda a sabedoria e paixão do oceano. Ela era aterrorizante e completamente sedutora.

Porém nada era mais impressionante que o colar. Nenhuma descrição lhe fizera justiça, as pérolas eram como pequenas gotas de orvalho, em um intrincado bordado de fios prateados tão finos, que pareciam quase não se podia ver, as águas-marinhas também, mas reluziam e tudo apenas servia para destacar a beleza da concha maciça, que parecia ter roubado toda a luz daquele ambiente.

“Vá embora.”

Ouviu, incapaz de identificar de onde vinha o som.

“Desista da sua ambição mesquinha, abandone este local.”

Desta vez, embora achasse estar ficando louco, jurou que as palavras vinham da estátua.

Checou seu equipamento, com medo de estar tendo alguma reação pela falta de oxigênio e constatou que não tinha muito tempo para voltar a superfície.

Uma voz no fundo de sua mente, muito parecida com a de Cassandra, suplicou que desse atenção as palavras da estátua e fosse embora, mas era o seu futuro ali, ao alcance de suas mãos.

Ignorando todos seus instintos, estendeu a mão e tocou a concha, que pareceu surpreendentemente quente, mesmo através da borracha das luvas que vestia. Puxou e a joia se soltou do pescoço da estátua, como uma criança que não quer largar a mãe, mas não tem forças para desistir.

Um choque percorreu seu corpo, desde a ponta de seus dedos, quase o fazendo soltar, mas Rodrigo insistiu e iniciou rapidamente seu caminho de volta.

Assim que voltou a segurança do interior do barco, percebeu o erro que cometera.

- O que você fez?! – Gritou seu amigo Pedro, com uma expressão atônita, segurando o timão do barco, como se parecesse ser seu único ponto de segurança, enquanto olhava fixamente para o horizonte.

Olhando na mesma direção, Rodrigo sentiu vontade de gritar, mas sua voz ficou engasgada em sua garganta.

Nuvens negras haviam se acumulado a cima de Flauta d’Água, despejando torrentes de água e a maior quantidade de raios que jamais vira.

Os gritos dos moradores chegavam a distância onde estavam, enquanto as vastas áreas de floresta tornavam-se vermelhas devido as chamas, que não paravam de avançar, a despeito da chuva.

As maiores ondas que já vira engoliam a uma vez pacífica costa e só então percebeu que a fúria do mar fazia com que o barco em que estava balançasse como uma pequena casca de noz.

- O colar! Devolva o colar! – Pedro tornou a gritar, fazendo com que o mergulhador se lembrasse que ainda segurava a joia.

Desesperado, sentindo a água do mar ser lavada pela tempestade que os atingia, arremessou a peça o mais longe que pode, em direção ao centro dos recifes.

Neste mesmo instante, assistiu uma onda certeira derrubar a ponte prateada, deixando para trás um monte de metal revirado, como o esqueleto de um monstro.

Impotente, assistiu o oceano engolir a cidade onde vivera toda a vida, tudo o que tinha e, provavelmente, todos aqueles que conhecia.

Sua pele gelada foi cortada pelo calor causticante das lágrimas que escorriam de seus olhos e sem que percebesse, murmurava e então gritava pedidos de desculpa e piedade.

Porém as forças da natureza permaneciam impassíveis, se vingando de sua arrogância e da de seus conterrâneos, que decidiram desfrutar da propaganda e promessas de investimento da empresa marítima, desrespeitando um contrato muito mais antigo.

Então, como se algo ancestral e cruel risse de sua desgraça, percebeu que os ventos uivantes que devastavam a outrora paradisíaca paisagem, pareciam cantar.

Não toque, não toque,
Não toque em seu colar.

Fim.

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