quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O Apostador.

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         Olhou suas cartas por mero reflexo, já tendo decorado os símbolos. Na sala enevoada com fumaça de cigarros, cheirando a bebida barata e suor, ecoava o som das risadas de seus companheiros de mesa.

         Ninguém lhe dava muita atenção, exceto para debochar de suas derrotas a cada rodada.

         Já havia perdido quase tudo o que tinha, mas como poderia parar agora? Já cruzara toda a madrugada jogando e o sol logo iria nascer anunciando o final do jogo. Não, não era hora de parar.

         Assistiu diversos amigos deixarem a mesa, quase quebrados, reunindo o pouco que lhes restara, desacreditados de qualquer possibilidade de virarem o jogo.

         A sua volta, os sorrisos de escárnio cresciam, junto com os goles de bebida e as baforadas de fumaça. Seus olhos lacrimejavam e era difícil de respirar.

         Mais uma rodada. Perdera novamente, assistiu uma mulher estonteante, em um caro vestido preto decotado, estender as duas mãos perfeitamente manicuradas pelo tampo da mesa e puxar em sua direção todas as fichas. Seus olhos brilhando em cobiça.

         Um homem ao seu lado riu da ânsia dela, enquanto batia algumas das fichas de sua própria montanha contra outras, relaxado, saboreando sua própria sorte.

         Do outro lado dela, outro homem ergueu um isqueiro, oferecendo-se para acender o novo cigarro que a mulher levara aos lábios.

         - Pare enquanto ainda tem alguma coisa. – Um amigo falou em seu ouvido, tendo se aproximado por detrás dele.

         Os dois olharam para as últimas cinco fichas a sua frente e ele sentiu medo do que significaria perdê-las. Porém ergueu os olhos, vendo que a pequena nesga de céu que aparecia entre as cortinas fechadas da janela, mudava lentamente de cor.

Balançou a cabeça em negativa, indicando que continuaria e sentiu o amigo apertar a mão em seu ombro, em um misto de apoio e condolências, antes de tornar a se afastar.

         Nem de longe sua aparência condizia com a de seus colegas de jogo, todos elegantes, em roupas caras, com joias que cintilavam mesmo na luz fraca do local.

         Usava um terno gasto, que sabia ter furos em alguns pontos do forro. A camisa de botões já não era tão branca, após várias lavagens, e seus sapatos, embora limpos, estavam bem gastos, sentia que as solas furariam em breve.

         Uma gota de suor frio correu por sua nuca, assistindo outra mulher, vestida de vermelho, embaralhar as cartas com destreza, antes de se preparar para distribui-las e então parou.

         Todos na mesa empurraram suas montanhas de fichas para o centro e passaram a encará-lo.

         Tudo ou nada, era a rodada final.

         Afrouxou o nó de sua gravata e passou uma das mãos pelos curtos cabelos negros, já bem bagunçados devido ao número de vezes que repetira o gesto naquela noite.

         De um canto da sala, os poucos amigos que ainda tinha o olhavam apreensivos, suas expressões implorando silenciosamente que desistisse.

         Todos os seus competidores estavam voltados em sua direção, com sorrisos famintos.

         A cena chegava ao ridículo. Uma ficha de cada uma dessas pessoas seria o suficiente para salvá-lo da completa ruina, porém ainda desejavam as poucas peças que lhe restavam. Queriam tudo só para eles.

         A reflexão se deu no espaço de dez segundos que levou para decidir. Não abaixaria a cabeça, não se permitiria desistir diante de seres tão pequenos e vazios quanto aqueles.

         Se perdesse, depois pensaria no que fazer, mas agora tinha o dever de arriscar. Não conseguiria voltar a dormir em paz, se parasse agora. Precisava mostrar aos amigos que deviam continuar tentando.

         Respirou fundo, antes de empurrar suas últimas fichas para o centro da mesa.

         - Ele não pode jogar. – Disse um de seus competidores, antes que suas fichas chegassem ao destino.

         Os olhares se voltaram para o velho em sua diagonal direita. Ele lhe lançou um olhar de desprezo, fazendo um arrepio frio percorrer sua coluna, mas manteve o olhar firme, não se permitindo intimidar.

         Suas mãos enrugadas estavam cruzadas sobre o tampo da mesa, ele exibia um sorriso pequeno e desagradável, que não atingia seus olhos, completamente negros e famintos, que pareciam capazes de rasgar o corpo e devorar a alma de quem os olhasse diretamente.

         Conheciam-se há muito tempo, mas do que qualquer um seria capaz de lembrar.

         - Deixe-o. – Falou a mulher de vermelho, ainda brincando com o baralho. – Vamos acabar com ele definitivamente.

         Os outros membros da mesa soltaram exclamações de apoio, ávidos pela oportunidade de o derrotarem uma última vez, silenciando qualquer possível argumento que o velho teria.

         Então as cartas foram distribuídas e ele sorriu, fazendo com que todos os outros presentes na mesa se arrepiassem.

         Mantivera-se inexpressivo o jogo inteiro, nada além da habitual aparência cansada, ressaltada pelas grandes olheiras e barba por fazer, que sempre tinha nos últimos tempos. Agora sorria, exibindo dentes brancos perfeitos, com os olhos azuis brilhando de satisfação.

         - Estou fora! – Exclamou a mulher de vermelho, jogando suas cartas sobre a mesa, sem virá-las.

         - Também estou. – Afirmou o homem que anteriormente brincava de bater suas fichas na mesa.

         - Fora. – Murmurou a de preto, com uma expressão contrariada.

         Um a um, todos os presentes na mesa desistiram, até restar apenas o jogador e o velho.

         A tensão no ar era palpável, ninguém parecia ter coragem de respirar.

         A boca do velho estava contorcida em uma expressão de desagrado e as mãos tremiam segurando as cartas, enquanto o outro permanecia tranquilo, sentado de modo relaxado, com um sorriso nos lábios.

         - Fora. – Por fim o velho declarou, soltando as cartas como se essas o queimassem.

         O apostador apenas abriu na mesa seu par de dois, ainda sorrindo, ouvindo os grunhidos irados daqueles com quem jogara, em xingamentos repletos de ódio.

         - Isso ainda não acabou. – O velho falou, entre os dentes cerrados de ódio.

         - Jogamos quando quiser. – Respondeu Esperança com tranquilidade, terminando de recolher seu prêmio e virando-se para a saída.

         Por entre as cortinas, o céu assumia diversos tons de laranja e vermelho, anunciando um novo dia.


Fim.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Escondido nas profundezas.

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         O rapaz atrás do balcão de atendimento novamente alternou o olhar entre ela e o caso, antes de dizer de modo inseguro:

         - Vo-você tem certeza de que quer mesmo esse trabalho?

          A mulher revirou os olhos, jogando para trás as mechas do cabelo prateado, tentando se acalmar.

         Havia poucos locais que gostasse menos do que estalagens para exterminadores, mas ainda eram os melhores lugares para conseguir novos trabalhos.

         - Por que não iria querer? – Perguntou, após respirar fundo e contar até dez mentalmente.

         - Be-bem... É um caso clássico de sereia matando civis, e-ela precisa ser abatida e você é conhecida por... por... – Era quase divertido vê-lo engasgar de nervosismos. Em alguma outra hora ou local, provavelmente teria pena do garoto, mas não se sentia disposta naquele dia. Ele engoliu em seco, antes de conseguir concluir. – Por ser simpatizante de monstros.

         Respirou fundo, reunindo a paciência mais uma vez. Já estava cansada de ouvir a mesma ladainha toda a vez.

         - Verdade? – Indagou de forma debochada, com um pequeno sorriso cínico, se inclinando contra o balcão, de modo a se aproximar mais do rapaz. Fazendo-o se encolher, assustado. – O que te faria pensar isso? Os olhos grandes? – Perguntou, arregalando os olhos, de modo a ressaltar as íris douradas. – Os dentes pontudos? – Continuou, abrindo mais o sorriso de modo feroz. – Ou as garras afiadas? – Concluiu, expandindo as unhas negras enquanto as batia no balcão.

         - O caso é seu! – O garoto exclamou com voz aguda. Chegando a tremer enquanto carimbava a ficha do pedido e a devolvia.

         A mulher fingiu um sorriso gentil, enquanto pegava o formulário do caso. Virando-se para deixar o local.

         Já estava quase chegando à porta quando ouviu uma voz conhecida:

         - Vejam só o que temos aqui, rapazes. O que dizer quando deixam uma vila inteira sob controle de um clã de vampiros? – Houve alguns instantes de silêncio, antes que voltasse a falar. – Cachorrinha feia, cadelinha muito feia!

         Uma serie de risadas altas irromperam do grupo com o qual o dono da voz falava.

         Com sua visão periférica conseguia ver o grupo de cinco exterminadores em uma mesa no canto da estalagem. Duas mulheres e três homens, sendo um deles responsável pelo comentário.

Enzo tinha estatura baixa e era um pouco a cima do peso, com o cabelo curto loiro escuro, pequenos olhos castanhos e trazia um pequeno sorriso desagradável.

No fundo de sua mente, uma voz lhe dizia que a melhor opção era ignorar e deixar logo a estalagem, mas não se sentia nem um pouco inclinada a fazê-lo.

- Diferente de vocês, Amaryllis é uma profissional competente! Ela não mata qualquer criatura, sem investigar com cuidado antes!

Todos os presentes se voltaram para o bar, onde a jovem atendente de aproximadamente 17 anos falava, com as mãos na cintura e uma expressão séria.

A exterminadora ficou em silêncio alguns segundos, olhando com os olhos arregalados e a boca entreaberta em surpresa. Não se lembrava da ultima vez que tinha sido defendida.

Todavia, Enzo fez um som de deboche estalando a língua.

- E quem te perguntou alguma coisa, garçonete? O seu trabalho é nos servir, faça-o em silêncio!

A meio-licantropo assistiu o grupo voltar a gargalhar em apoio, enquanto a garota corava, constrangida.

Isso foi o suficiente para selar a questão. Voltou-se totalmente para o grupo, observando o exterminador metido a engraçadinho de cima a baixo e sorriu satisfeita, vendo o colar de presas de lobisomem que ostentava.

Abriu um meio sorriso condescendente, antes de falar:

- Esta certamente feliz hoje, não é mesmo, Enzo? Resultado da recente lua de mel?

O loiro a encarou, parecendo confuso. O grupo inteiro em silêncio, assistindo o desenrolar da história.

- Este colar de presas de lobisomens. – Explicou como se falasse com uma criança pequena, apontando para a peça. – Parece muito com o que os alfas das tribos do oeste presenteiam seus parceiros em noites de acasalamento.

O homem arregalou os olhos, enquanto seus companheiros tentavam e falhavam em conter o riso.

- O que você esta insinuando?! – Bradou, com uma expressão indignada, sentindo o rosto esquentar.

- Nada demais. – Respondeu, com a melhor cara ingênua que sabia forjar, chegando a erguer as mãos como em sinal rendição. – Apenas quero dizer que desejo toda felicidade ao casal. – concluiu.

Dessa vez os outros exterminadores nem se esforçaram para controlar as gargalhadas, que ecoaram na estalagem vazia, abafando os gritos indignados do loiro.

Tornou a se virar para sair, não sem antes olhar de canto de olho para atendente, que a observava com as bochechas coradas e olhos brilhando em admiração. Não acostumada com aquele tipo de reação, apenas piscou um olho para ela, antes de ir embora.

O caso que escolhera era simples: Em um vilarejo ribeirinho, o número de crianças e adolescentes morrendo afogados havia triplicado no último ano. Não por acaso, mesma época em que decidiram expandir o vilarejo, invadindo uma parte até então isolada do rio.

Parecia uma clássica situação de humanos tomando espaços, sem se preocupar com o que vivia ali antes.

Foram três dias de viagem até o local. Chegou ao final da tarde, quando a maior parte dos pescadores já haviam retornado do trabalho e estavam em seus lares, com suas famílias. Portando chamou pouca atenção. Logo se apresentou na casa do chefe do vilarejo e decidiu começar a investigação o quanto antes.

Foi informada de que acharam uma nova vítima naquela manhã, o corpo ainda se encontrava em uma pequena sala na capela do vilarejo, onde seria preparado para o funeral.

Sentiu-se enjoada no momento em que adentrou na sala, que tinha apenas uma pequena janela, não dando conta da ventilação. Todo o ambiente recendia a ervas muito doces e carne em decomposição. O fato da vítima ter se afogado, deixava o odor ainda mais desagradável.

A exterminadora sentiu necessidade imediata de deixar o lugar em busca de ar fresco, a cabeça rodando devido ao enjoo. Uma pessoa normal já não lidaria bem com o cheiro, mas com seu olfato apurado era uma verdadeira tortura.

Apertou as garras pontiagudas na palma da mão, tentando se manter firme e se aproximou do corpo. Era uma menina, que devia ter 13/14 anos, a pele antes morena, desbotaram para um tom cinzento e nauseante.

Lamentou não ter visto o corpo no local em que fora encontrado, a manipulação podia ter eliminado diversas possíveis pistas. Bem como a água sumira com qualquer cheiro que indicasse com o que estava lidando.

Além disso, o corpo permanecia intacto, sem qualquer indicação de que alguma criatura se alimentara dele. O que enfraquecia a teoria de que se tratava de uma sereia.

De repente o trabalho já não era tão simples.

O ambiente fechado da sala, além de tudo era quente. Sentia sua cabeça doer devido aos odores, dificultando seu raciocínio e turvando sua visão, enquanto se forçava a continuar examinando o corpo em busca de qualquer indício.

Analisando com cuidado as mãos, que ainda continham resquícios da lama do rio em baixo das unhas, notou o fio enrolado entre os dedos finos da vítima.

Era um fio muito longo, que não dava para definir se a cor era preta ou um verde muito escuro, e não parecia se tratar de cabelo, pois era mais grosso que o comum.

Desistindo de encontrar mais alguma coisa, deixou a sala as pressas. Não se importando em demonstrar o quanto estava aliviada uma vez que chegou a parte de fora da capela e pode finalmente respirar ar puro.

- Senhorita exterminadora?

Voltou-se para a pessoa que a chamava, ainda sugando grandes lufadas de ar, tentando eliminar qualquer resquício do cheiro enjoativo.

Reconheceu o homem que a chamava como um dos que estavam na casa do chefe quando chegou. Era um homem alto, de pele muito escura, cabeça raspada, com músculos desenvolvidos por anos de trabalho pesado e um olhar gentil.

Amaryllis gostava de trabalhar nos reinos do sul, onde sua pele acobreada se misturava na multidão e as pessoas demonstravam ser mais calorosas e receptivas.

Permaneceu em silêncio o encarando e o homem logo voltou a falar, parecendo inseguro.

- Bem, eu queria de saber se a senhorita vai assistir a cerimônia mais tarde?

- Que cerimônia?

O homem parece desconcertado diante da pergunta e esfregou uma das mãos calejadas na nuca, desviando o olhar quando voltou a falar.

- Be-bem, nós pensamos que a senhorita chegaria aqui e iria logo para a floresta, matar o monstro... Mas como parou para investigar e acabamos de perder mais uma criança... – O homem parecia constrangido pelo que estava dizendo, sua demora servindo apenas para deixar a exterminadora nervosa e irritada. – O chefe decidiu fazer um sacrifício para acalmar o rio.

         A mulher sentiu seu coração acelerar de imediato, não acreditando no que ouvia.

         - Como assim sacrifício para o rio?! Vocês chamaram um exterminador para resolver o problema e agora que estou aqui decidem fazer isso?! – Sentiu uma pontada de culpa, vendo o homem se encolher diante do volume e agressividade de suas palavras, mas não conseguia, nem queria, se conter.

         - Sim, mas a senhorita chegou agora de tarde e ainda ‘ta aí, olhando os cadáveres que já morreram.

         Passou a mão sobre o rosto, apertando a ponte do nariz, entre os olhos, e respirou fundo, tentando se acalmar.

         - Eu estou investigando. – Falou de forma pausada, tentando conter a irritação que sentia. – Como posso matar algo, que não sei o que é?

         - Mas a gente não pode ficar esperando a senhorita investigar, dona exterminadora, os jovens estão morrendo e a gente precisa dessa mão de obra.

- Mas não faz sentido! Vocês me chamaram aqui porque um monstro esta matando os jovens e então decidem simplesmente matar um de graça, para tentar aplacar uma criatura que não sabem o que é?!

- Olha, essa foi a decisão do chefe. – Respondeu do homem, que continuava desviando o olhar da exterminadora, demonstrando estar extremamente desconfortável com a situação.

- Jura? E como o chefe pretende decidir qual criança matar? – Perguntou, entre dentes, contendo-se para não rosnar de raiva.

- Já escolheram uma menina, a Clara, é filha de um grande pescador da vila, mas nasceu cega, tadinha, não serve para nada.

Sentiu um nó se fechar em sua garganta, diante das palavras. O homem não falava com maldade, demonstrando real pena da garota, no mesmo tempo que não parecia perceber a gravidade do que dizia.

Infelizmente fazia sentido, nos reinos do leste pessoas cegas eram consideradas sábias. Porém no sul, ainda mais em um vilarejo tão pequeno e humilde, não eram bem vistas.

- 24 horas! – Falou, sentindo as palavras arranharem sua garganta, e o homem a olhou confuso. – Me dê 24 horas, até o pôr-do-sol de amanhã, para ir até floresta e matar a criatura, depois disso podem fazer o que quiserem!

O homem abriu um sorriso animado diante das palavras dela, acenando com a cabeça com afinco.

- Eu vou fazer tudo que puder. – Prometeu.

A exterminadora acenou com a cabeça uma vez em confirmação, vendo-o partir em direção a casa do chefe.

Ficando sozinha, olhou para o céu que já estava escuro, apinhado de estrelas e com a lua minguante em um sorriso tenebroso, sabia que estava arriscando demais.

Montou em sua moto, sentindo seu corpo todo arrepiar ao som do motor, enquanto a vibração do veículo a aquecia, antes de partir para a floresta.

Era praticamente suicídio, tinha consciência disso, se embrenhar em meio à floresta, de noite, sem saber o que enfrentaria. Poderia ser um fantasma de alguém que se afogara no rio, e teria que ter pesquisado o ritual correto para fazê-lo deixar o local. Talvez fosse uma pessoa comum, um assassino se valendo das lendas sobre o rio para encobrir seus crimes. Nem mesmo uma sereia estava totalmente descartada, ela poderia simplesmente ser muito vingativa, matando não para comer, mas para tentar afastar os humanos que invadiram seu território.

Não sabia o que a aguardava, mas não podia deixar que matassem um inocente. Simplesmente não podia.

Chegando ao ponto do rio onde os afogamentos teriam acontecido, parou a moto, sentindo calafrios.

Todo o local exalava uma aura instigante, sedutora e pouco convidativa ao mesmo tempo. A copa das arvores se entrelaçavam, impedindo a passagem de quase toda iluminação das estrelas e deixando o farol da moto como praticamente a única fonte de luz.

Também não havia como identificar qualquer cheiro específico, em meio aos aromas da floresta, fazendo com que se visse em completa desvantagem.

Andou pelo local, atenta a todos os sons, buscando por marcas na terra úmida da margem.

Estava de costas para o rio, quando ouviu o som de pequenas ondas quebrando na margem, como um suave galopar.

Virou-se a tempo de ver emergir das águas um dos seres mais belos que já encontrara. Tinha a forma humana, um corpo que parecia esculpido, forte e proporcional, a barriga plana, seios fartos e quadris largos, as pernas grossas, torneadas, com músculos que pareciam ter nascido com a ela, e braços longos e delineados. O rosto tinha proporções perfeitas, com o nariz arredondado harmonioso com as maçãs do rosto altas. A boca de lábios grossos trazia um sorriso, que deixava entrever uma fileira de perfeitos dentes perolados, e os olhos muito escuros pareciam capazes de devorar a alma de quem os olhasse por muito tempo.

Estava completamente nua, a pele negra chegando a reluzir sob a luz do farol, com o corpo sendo apenas parcialmente coberto pelos longos cabelos que desciam até os joelhos, em fios curvos que pareciam mesclar tons de preto e um verde tão escuro quanto o musgo que se acumulava na beira do rio.

Diante de tão incrível visão, sentiu dificuldade para respirar, ficando paralisada, com os lábios entreabertos em surpresa. Porém quando o ser deu um passo em sua direção, assumiu uma postura defensiva, com uma expressão séria.

- Você é um cavalo das águas. – Afirmou.

A criatura inclinou levemente a cabeça em concordância.

- E você é... Interessante. – Respondeu, em um tom de voz suave, que fez com que um calor se espalhasse por todo seu abdômen, concentrando-se em seu baixo ventre.

Amaryllis respirava fundo, buscando conter as reações de seu corpo, enquanto o ser permanecia parado, observando-a sem dar qualquer sinal de que iria se mover.

- Não faz sentido. – Continuou a meio-licantropo. – Cavalos das águas não matam com tanta frequência, exatamente para não atraírem atenção. Mas no último ano você já matou 15 pessoas! - A criatura apenas expandiu seu sorriso, sem dizer mais nada. – Por que esta fazendo isso?

O Cavalo das Águas deu uma risada perversa, que faz Amaryllis se sentir pequena e indefesa.

- Porque posso, porque é divertido. – Respondeu como se não estivesse dizendo nada demais, fazendo com que a exterminadora sentisse um nó em sua garganta. – Estava entediada de apenas assistir humanos morrendo de vez em quando, então decidi que iria brincar com eles, aterrorizá-los e então assisti-los matarem uns aos outros buscando a própria sobrevivência, até que se autodestruíssem por completo.

- Não vou permitir que continue com isso. – Afirmou, sentindo uma mistura de raiva e repulsa queimar na altura de seu estômago.

Porém a criatura apenas riu com mais vontade.

- Por que não, pequena mestiça? Aquele bando de humanos ignorantes não significa nada para você. Nós poderíamos negociar um acordo muito mais... divertido. - A voz da criatura era rouca, insinuante e tentadora.

A exterminadora assistiu, com o coração acelerando, quando ela mudava de forma, tornando-se um homem com corpo e rosto tão perfeitos quanto a versão feminina, sem desviar em nenhum instante o olhar penetrante.

- Te deixo escolher a forma que mais lhe agradar... Se puder é claro. – Quando voltou a falar, a voz se tornara mais grave, parecendo escorrer pela língua e fazendo Amaryllis se arrepiar.

- Eu... – Engasgou, sua voz saindo tremida, antes que engolisse em seco e voltasse a falar. – Eu não vou permitir que continue matando inocentes!

Manteve-se firme, lutando contra o desejo de se entregar a sedução e sentindo seu corpo inteiro protestar contra a decisão.

- Oh, como você é nobre. – Debochou a criatura, dando mais um passo em direção a terra.

A exterminadora tremeu, vendo a forma masculina inteira fora da água. Em sua versão feminina, a criatura devia regular de altura com ela, mas nesta forma a fazia se sentir pequena.

- De onde vem tanta nobreza, jovem Amaryllis? – A pergunta também veio em tom de deboche. – Será a sua necessidade de provar que não é um monstro?

Engasgou, sentindo o peso do olhar do Cavalo das Águas sobre si, queria desviar dele, mas não conseguia, assistindo-o se aproximar cada vez mais.

- Eu não preciso provar nada pra ninguém! – Respondeu, no tom mais firme que conseguia.

- Ah, sim, precisa sim. – Retrucou a criatura, agora tão perto que bastava estender o braço para tocá-la. Ergueu a mão e acariciou a bochecha esquerda da mulher com o polegar. – Eu consigo ver por trás da sua fachada de dureza. Enxergar a pequena menina solitária, tão carente de aprovação. - Ela tremia, querendo negar as palavras dele, o contato da pele gelada fazendo com que seu corpo fosse tomado por um misto de pavor e desejo. – Deixe-me curar essa carência por essa noite, prometo fazê-la se sentir tão bem. – Concluiu, tão próximo que sua respiração fria e estável se misturava com o ofegar incerto da exterminadora.

Juntando todas as suas forças, ela deu um passo para trás, cortando o contato e conseguindo recuperar um pouco do autocontrole.

- E depois você me mata afogada, não é verdade? – Falou, satisfeita consigo mesma por sua voz não ter tremido.

A criatura apenas riu, jogando para trás uma mecha de cabelo.

- Oh, criança, eu vou te matar de qualquer jeito. – Respondeu, assumindo um ar totalmente predatório, antes de atacá-la.

Amaryllis conseguiu se desviar por pouco, impedindo que ele a agarrasse com a mão direita. Deixando suas garras se expandirem, tentou segurar o braço da criatura, mas a pele lisa e molhada deslizou com facilidade.

Sem hesitar, o ser ergueu a perna esquerda, acertando uma joelhada diretamente na lateral direita da exterminadora, que sentiu suas costelas trincarem diante do impacto, ao mesmo tempo que todo o ar deixava seus pulmões.

Determinada a não cair, afastou as pernas, fincando os pés com firmeza na terra molhada, e assumindo uma postura defensiva com os braços, enquanto o Cavalo das Águas voltava a se mover em sua direção.

O viu mover a mão esquerda, como se planejasse agarrar seu pescoço, e ergueu o braço direito, impedindo-o, ao mesmo tempo que se valia da proximidade para desferir um golpe contra sua cabeça com a mão esquerda, sorrindo satisfeita ao sentir suas garras rasgarem a bochecha do monstro.

Ele urrou de ódio, sentindo a dor dos cortes e segurou com força o braço que ela usara para se defender, impedindo-a de se afastar, enquanto desferia uma serie de joelhadas em sua lateral esquerda.

Quase cega pela dor, Amarillys tornou a atacar com a mão esquerda, batendo seu punho diretamente na mandíbula da criatura, que a soltou e recuou dois passos com o impacto do golpe.

Ignorando os protestos de seu corpo, a exterminadora aproveitou a oportunidade para avançar, desferindo uma serie de socos no abdômen da criatura.

Infelizmente, estava cansada após três dias de viagem e a ida direta para a floresta, e em um intervalo um pouco mais longo entre os socos, o cavalo das águas conseguiu segurar seu braço esquerdo, torcendo-o em suas costas de modo a imobilizá-la.

- Eu vou matar você, aberração, e depois irei assistir os idiotas sacrificarem uma a uma suas crianças, tentando me impedir de matar as outras.

Amaryllis respirou fundo, se preparando para a dor que sentiria. Antes de acertar uma cotovelada na criatura, com o braço que não estava imobilizado, sentindo-a recuar com o impacto. Porém o puxão em seu braço esquerdo fez com que deslocasse o ombro.

Mordendo o lábio inferior para conter o gripo de dor, virou-se para a criatura, valendo-se da surpresa desta para segurá-lo pelo pescoço.

- Não, hoje você não vai, seu filho da puta! – Gritou, afundando as garras na carne e dilacerando sua garganta.

Assistiu a criatura rolar no chão, debatendo-se desesperado, tentando conter o sangramento, enquanto se afogava com o próprio sangue, até ficar totalmente imóvel. Lentamente voltando à forma original, de um imenso cavalo negro, com crina verde escuro.

Amaryllis respirava fundo, arfando, sentindo seu corpo inteiro protestar de devido à dor e cansaço.

Aproveitando-se do calor da batalha e da adrenalina pulsando em suas veias, fechou a mão sobre o ombro deslocado, puxando-o de volta ao lugar. Arrancando sangue dos lábios, que mordera tentando conter a dor.

Caiu exausta, seu corpo cedendo a exaustão. Não conseguiu resistir ao torpor do sono que a tomava, jurando que fecharia os olhos por apenas 15 minutos.

Quando despertou, o sol já estava alto, seus raios penetrando pela copa das árvores e aquecendo a terra gelada da margem do rio.

Tentou se levantar, apenas para sentir todas as suas costelas protestando. Mal conseguia mover o braço esquerdo, sentindo o ombro quente e inchado dentro da jaqueta que couro, que agora trazia um calor desconfortável.

Sentia o cheiro do corpo em decomposição do cavalo das águas a poucos menos de dois metros de distância, enjoando-a e fazendo aumentar a dor de cabeça que pressionava atrás de seus olhos.

Pressionou os dedos por cima das pálpebras, tentando aliviar o mínimo a dor, antes de se obrigar a levantar.

Foi em passos cambaleantes até a moto, lutando para montá-la e manter o equilíbrio com apenas a mão direita no guidom, determinada a chegar ao vilarejo onde talvez tivesse algum atendimento.

Conseguiu chegar à entrada do local no fim da tarde, desligando a moto, antes de quase desmaiar de dor, dando um jeito de cair para o lado direito, de modo que mesmo o veículo caindo, não esmagasse sua perna.

Os moradores do vilarejo estavam reunidos e ao a avistarem, um grupo correu em sua direção.

Respirava fundo, com os olhos embaçados pela dor. Gemeu em protesto quando dois homens a seguraram e colocaram sentada, era difícil focar em qualquer coisa, até que reconheceu a voz que falava com ela, sendo o mesmo homem que a abordara na noite anterior.

- Senhorita exterminadora! Senhorita exterminadora! O que houve?

Piscou os olhos algumas vezes, recuperando o foco, antes de falar.

- Eu consegui... – Murmurou, erguendo a mão direita, ainda suja com o sangue escuro da criatura. – Matei o cavalo das águas que estava afogando as crianças, não... Ninguém precisa ser sacrificado. – Concluiu, falando com a voz fraca.

Uma serie de murmúrios seguiram suas palavras, enquanto os moradores cochichavam entre si.

Amaryllis sentiu um nó se formar em seu peito, vendo o homem engolir em seco.

- Eu sinto muito, senhorita exterminadora, mas o chefe não...

As palavras tornaram-se um zumbido no fundo da mente da meio-licantropo, enquanto ela erguia os olhos e percorria a multidão turva. Entre eles, era possível ver um grupo de quatro homens carregando uma maca, coberta por um pano branco, que não escondia a forma do que era inegavelmente um corpo.

Virou-se para o lado e vomitou apenas suco gástrico, já que não comia desde o almoço no dia anterior, sentindo o canto dos olhos queimarem com lágrimas contidas.

Os homens da aldeia a movimentavam, levando-a para a pequena cabana onde teria um pequeno centro médico. Porém Amaryllis sentia-se anestesiada, as vozes das pessoas ao seu redor eram apenas zumbidos.

Não adiantara de nada, o risco que correra indo até o local, sem saber o que iria enfrentar, e resistir às tentações da criatura, nada! Aquelas pessoas mataram uma criança, não quiseram esperá-la voltar, não lhe deram o menor voto de confiança, preferiram acabar com a vida de uma pobre menina cega.

Foi colocada sobre uma cama e desmaiou, sentindo-se fraca, derrotada e inútil.

Falhara.


Fim.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Espelho, Espelho Meu.

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         Você já conhece essa história ou, pelo menos, pensa que conhece. Porém deveria saber que as coisas nem sempre são tão claras quanto parecem.

         Anos antes do desenrolar da trama entre a “Rainha Má” e Branca de Neve, teve início a história de um personagem menor, jamais esquecido, porém a quem ninguém dá o devido valor.

         O espelho.

         Muito antes do veredito sobre quem seria a mais bela, antes mesmo de tornar-se mágico, presenciou tragédias que o levaram ao seu sinistro despertar.

Foi confeccionado por um famoso artesão, de um grande vilarejo, a mando de um nobre. Todo em cristal e prata, com uma bela moldura de madeira avermelhada, decorada com arabescos dourados. Uma verdadeira obra de arte.

         O nobre, duque Hornung, o comprara como presente de casamento para sua noiva, lady Braun, considerada a dama mais bela da região, com a pele muito pálida, translúcidos olhos azuis, cabelos loiros em cachos brilhantes e o corpo roliço com curvas acentuadas.

         Ele a presenteou na noite de núpcias e parecia ser o início de uma relação feliz, repleta de encantamento.

         No entanto dali de sua posição aos pés da cama, o espelho presenciou, iluminado pelas chamas das tochas e velas, o início da tragédia.

         O duque tinha muitas qualidades, mas seu maior defeito era a ganância e desposar tão bela donzela fazia bem a sua vaidade.

Talvez a alimentasse até demais, pois naquela noite, ao consumar o casamento, o nobre posicionara sua esposa de modo que pudesse ver seus reflexos no espelho e olhara apenas para eles.

A chegada do primeiro filho do casal não fora um momento de alegria. O duque assistira com desgosto o crescimento do bebe deformar a curva delicada da cintura de sua esposa, deixar marcas na pele leitosa de seus seios e roubar a graça de seus movimentos.

Nem mesmo o nascimento de um herdeiro aplacou a frustração do duque ao ver sua esposa perder a aparência jovem.

O cruel e irrefreável passar dos anos trouxeram dor e sofrimento a nova duquesa, sentindo-se cada vez mais abandonada por seu esposo. O peso da idade e das responsabilidades, tanto quanto a falta de carinho, cobravam seu preço. Sua pele perdia a maciez, seus olhos e cabelos o brilho. Sendo continuamente cobrada pelo marido, agredida como punição pelo pecado de envelhecer.

Durante anos suportou as palavras duras e o deboche, convencida de que nada poderia fazer, submissa em seu papel de esposa.

Até que, na fatídica noite, enquanto costurava um manto para o inverno que se aproximava, o duque adentrou em seus aposentos com um forte cheiro de álcool.

O homem que antes a olhara como se fosse uma jóia preciosa, agora só lhe tinha desprezo.

Assustou-se ao vê-lo se aproximar, queria fugir, mas o medo a paralisara. Guinchou como um animal ferido, quando a mão forte se fechou em seu braço, a tirando da cadeira e puxando-a até a frente do objeto que mais passara a odiar.

O maldito espelho, agora empoeirado pela falta de cuidado, ainda refletia com clareza a expressão de pânico da mulher, que tentava resistir à violência.

- Olhe para você! – Grunhiu o duque com a voz enrolada pelo álcool. Enquanto a segurava pelos cabelos e forçava a olhar para o espelho. – Me casei com a dama mais bela da região e veja agora o que tenho! É uma velha enrugada e cheia de pelancas!

A duquesa chorava diante das palavras cruéis, sem forças para resistir à violência sofrida.

- Do que me serve uma gorda desleixada como você? – O homem continuou seu ataque, inquirindo enquanto a sacudia, jamais deixando que desviasse o olhar de seu reflexo.

Ela odiava o que via, odiava a flacidez de seu abdômen após carregar três crianças, odiava as linhas que surgiam no entorno de seus olhos e o fato de já não ter mais tempo para deixar escovarem seus cabelos até que ficassem sedosos e brilhantes como antes.

Nada tinha valor, sua dedicação a cuidar da casa, os filhos saudáveis que gerara. Seu marido a odiava por não ter mais a aparência de donzela e fez com que ela também se odiasse por isso.

- Esta noite, eu encerro este sofrimento! – Disse o duque, de modo tranquilo, puxando a adaga que sempre carregava em seu cinto.

A dama tentou lutar, mas era muito menor e mais fraca. Hornung segurou seus dois pulsos em suas costas, impedindo-a de se debater e correu o fio da adaga pela garganta da esposa.

Permaneceu segurando-a, vendo-a engasgar no próprio sangue. Assistindo a tudo pelo reflexo do espelho, agora tingido de vermelho.


A história da terrível desgraça do casal Hornung percorreu a região, fazendo com que aldeões cochichassem sobre o maligno objeto, ao qual atribuíam a culpa do caso.

Até que os boatos chegaram aos ouvidos de um excêntrico visconde, famoso por colecionar objetos raros.

Ele arrematou o objeto e ficou fascinado no primeiro momento que o encarou no meio da sua sala de visitas. O rico acabamento da moldura e a perfeita imagem que refletia. Já não tinha mais qualquer marca do crime que presenciara, mas rescendia às ervas usadas para limpá-lo antes da entrega.

         Era um objeto tão belo, que o visconde se recusou a deixá-lo escondido em algum quarto, ordenando que fosse pendurado na própria sala de visitas, em frente ao sofá.

         Era um homem jovem, herdeiro de grande fortuna, que perdera os pais cedo, sendo o único remanescente da família Schock.

Não apenas era rico, mas também possuidor de uma aparência estonteante. Cabelos negros como as penas de um corvo e olhos no mesmo tom e profundos, a pele levemente amorenada pelo passatempo da caça e um corpo bem desenvolvido pelo mesmo, largo e longilíneo.

Por tudo isso era considerado um bom partido, cobiçado por todas as jovens donzelas da região.

Entretanto nenhuma delas se mostrava capaz de conquistar o coração do visconde, que mantinha em segredo e absoluto sigilo sua fascinação por outros jovens.

Usava sua bela aparência e influência para seduzir seus amantes. Levava-os para sua residência e com eles praticava todo o tipo de perversão a que estivessem dispostos.

Jamais ia além da sala de visitas. Saboreava suas vítimas na frente do espelho que tanto lhe fascinava. Encontrando especial prazer em assistir os atos realizados, no reflexo frio da superfície de cristal.

Durante vinte anos o objeto presenciou cenas das incontáveis orgias que se desenrolaram em sua frente, absorvendo cada imagem e os elogios ao corpo de seu dono e ao modo como ele o movimentava.

Porém tais cenas tornavam-se cada vez mais raras, enquanto os sibilares dos servos sobre as ações de seu senhor ganhavam volume.

O visconde Schock sentia seu espirito sugado, em atos cada vez mais vazios. Afastara amantes, apenas pensando em prazeres imediatos e agora se via a cada dia mais só, com a decadência de suas formas, tornando-o cada vez menos atraente.

Foi numa madrugada gelada de inverno que o visconde tomou sua decisão derradeira. Indo até a sala onde antes gozara de tanto prazer e bons momentos, posicionou-se no mesmo sofá, encarando seu reflexo no espelho que os criados mantinham impecavelmente limpo e polido.

Observou o reflexo que parecia zombar dele. Os cabelos agora grisalhos, com grandes entradas em sua testa, as marcas da idade por todo seu rosto e o corpo agora aparentando magreza e fragilidade.

Ergueu o cálice onde depositara sua última bebida e brindou a imagem decrépita que o encarava de volta, antes de beber todo o conteúdo.

A superfície lisa observou a vida deixar o corpo de forma dolorosa, o engasgar causado pelo veneno e os espasmos do corpo em luta, até o solitário fim.


Devido a ausência de herdeiros, os objetos do visconde foram repartidos entre a realeza e o clero.

O espelho foi entregue, junto com outros objetos raros e preciosos, ao monarca daquele reino, famoso por sua justiça e honra.

Recém-casado com a princesa de um reino vizinho, que o fascinara devido a gentileza e a doçura de seus atos e voz. Mostrava-se mais generoso do que nunca, fazendo com que fosse ainda mais amado por seus súditos.

Observava a entrega dos objetos junto de sua amada rainha, quando lhe mostraram o espelho que, de pronto, o fascinou pela magnificência dos detalhes.

Para sua surpresa, sua esposa se encolheu diante do objeto, como se tentasse impedir que capturasse seu reflexo.

- Meu marido, eu te peço, por favor, afaste este objeto de nós, pois não me sinto a vontade próxima a ele.

Tão raro era sua esposa lhe pedir qualquer coisa, que não hesitou em acatar ao aparente capricho, ordenando que o espelho fosse deixado em um dos muito aposentos vazios do castelo.

Durante muito tempo, o objeto permaneceu guardado, vindo a ser esquecido.

Entretanto um dia, pouco após dar a luz a primeira criança do casal, a rainha caiu vítima de uma doença misteriosa.

Médicos, sábios e curandeiros de todo o reino foram chamados, porém nenhum se mostrava capaz de encontrar uma cura para a rainha ou sequer os motivos da doença.

Durante todo tempo, a despeito do desconhecimento sobre o mal que acometia a rainha e o medo de ser contagioso, uma jovem serva se manteve cuidando dela.

Tinha olhos verdes como esmeraldas, faiscantes com astúcia, cabelos longos da cor da palha e pele rosada como as pétalas de uma rosa.

- Meu senhor. – Ousou falar certa vez em que o rei visitava os aposentos de sua amada, enquanto cuidava dela.

Ele se mostrou surpreso pela criada lhe dirigir a palavra, mas tinha imensa gratidão por ela, tão bela e jovem, se manter leal a sua esposa em hora tão dolorosa. Então, permitiu que prosseguisse.

- Meu rei, imploro que não me julgue ousada. Porém, poderia lhe pedir um aposento mais próximo aos da rainha? Não peço por cobiça, majestade. – Afirmou, unindo as mãos em forma de prece. – Mas Seria mais fácil cuidar da rainha se estivesse sempre por perto.

Encantado pela prestatividade da criada, que há pouco chegara no castelo e já se mostrava tão leal, o rei não teve dúvidas em atender seu pedido.

No mesmo dia, ela fez sua mudança para um dos aposentos inutilizados do castelo, carregando uma pequena trouxa de roupas e um baú revestido em couro, que mantinha trancado e longe dos olhares de todos.

Entrando no amplo espaço do cômodo, passou a ponta dos dedos pelo tecido macio do lençol que cobria a grande cama, antes de olhar na direção da penteadeira que ficava próxima a janela e sorrir para seu reflexo no enorme espelho acima dela.

Soltando seus cabelos das tranças de serviçal, sentou-se em frente a ele, admirando sua aparência, antes de murmurar:

- Fala mágico espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?

Não fingiu surpresa, ao assistir seu reflexo sumir da superfície de cristal, substituído por uma máscara branca e sorridente que, com uma voz rouca como o som de cacos de vidro, lhe respondeu:

- Não, minha dama, de todas as mulheres que existem no mundo, tu és a mais bela.


Fim.