quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Espelho, Espelho Meu.

Imagem localizada no google e editada por mim. Caso encontre problemas de direitos autorais ou uso, favor entrar em contato.

         Você já conhece essa história ou, pelo menos, pensa que conhece. Porém deveria saber que as coisas nem sempre são tão claras quanto parecem.

         Anos antes do desenrolar da trama entre a “Rainha Má” e Branca de Neve, teve início a história de um personagem menor, jamais esquecido, porém a quem ninguém dá o devido valor.

         O espelho.

         Muito antes do veredito sobre quem seria a mais bela, antes mesmo de tornar-se mágico, presenciou tragédias que o levaram ao seu sinistro despertar.

Foi confeccionado por um famoso artesão, de um grande vilarejo, a mando de um nobre. Todo em cristal e prata, com uma bela moldura de madeira avermelhada, decorada com arabescos dourados. Uma verdadeira obra de arte.

         O nobre, duque Hornung, o comprara como presente de casamento para sua noiva, lady Braun, considerada a dama mais bela da região, com a pele muito pálida, translúcidos olhos azuis, cabelos loiros em cachos brilhantes e o corpo roliço com curvas acentuadas.

         Ele a presenteou na noite de núpcias e parecia ser o início de uma relação feliz, repleta de encantamento.

         No entanto dali de sua posição aos pés da cama, o espelho presenciou, iluminado pelas chamas das tochas e velas, o início da tragédia.

         O duque tinha muitas qualidades, mas seu maior defeito era a ganância e desposar tão bela donzela fazia bem a sua vaidade.

Talvez a alimentasse até demais, pois naquela noite, ao consumar o casamento, o nobre posicionara sua esposa de modo que pudesse ver seus reflexos no espelho e olhara apenas para eles.

A chegada do primeiro filho do casal não fora um momento de alegria. O duque assistira com desgosto o crescimento do bebe deformar a curva delicada da cintura de sua esposa, deixar marcas na pele leitosa de seus seios e roubar a graça de seus movimentos.

Nem mesmo o nascimento de um herdeiro aplacou a frustração do duque ao ver sua esposa perder a aparência jovem.

O cruel e irrefreável passar dos anos trouxeram dor e sofrimento a nova duquesa, sentindo-se cada vez mais abandonada por seu esposo. O peso da idade e das responsabilidades, tanto quanto a falta de carinho, cobravam seu preço. Sua pele perdia a maciez, seus olhos e cabelos o brilho. Sendo continuamente cobrada pelo marido, agredida como punição pelo pecado de envelhecer.

Durante anos suportou as palavras duras e o deboche, convencida de que nada poderia fazer, submissa em seu papel de esposa.

Até que, na fatídica noite, enquanto costurava um manto para o inverno que se aproximava, o duque adentrou em seus aposentos com um forte cheiro de álcool.

O homem que antes a olhara como se fosse uma jóia preciosa, agora só lhe tinha desprezo.

Assustou-se ao vê-lo se aproximar, queria fugir, mas o medo a paralisara. Guinchou como um animal ferido, quando a mão forte se fechou em seu braço, a tirando da cadeira e puxando-a até a frente do objeto que mais passara a odiar.

O maldito espelho, agora empoeirado pela falta de cuidado, ainda refletia com clareza a expressão de pânico da mulher, que tentava resistir à violência.

- Olhe para você! – Grunhiu o duque com a voz enrolada pelo álcool. Enquanto a segurava pelos cabelos e forçava a olhar para o espelho. – Me casei com a dama mais bela da região e veja agora o que tenho! É uma velha enrugada e cheia de pelancas!

A duquesa chorava diante das palavras cruéis, sem forças para resistir à violência sofrida.

- Do que me serve uma gorda desleixada como você? – O homem continuou seu ataque, inquirindo enquanto a sacudia, jamais deixando que desviasse o olhar de seu reflexo.

Ela odiava o que via, odiava a flacidez de seu abdômen após carregar três crianças, odiava as linhas que surgiam no entorno de seus olhos e o fato de já não ter mais tempo para deixar escovarem seus cabelos até que ficassem sedosos e brilhantes como antes.

Nada tinha valor, sua dedicação a cuidar da casa, os filhos saudáveis que gerara. Seu marido a odiava por não ter mais a aparência de donzela e fez com que ela também se odiasse por isso.

- Esta noite, eu encerro este sofrimento! – Disse o duque, de modo tranquilo, puxando a adaga que sempre carregava em seu cinto.

A dama tentou lutar, mas era muito menor e mais fraca. Hornung segurou seus dois pulsos em suas costas, impedindo-a de se debater e correu o fio da adaga pela garganta da esposa.

Permaneceu segurando-a, vendo-a engasgar no próprio sangue. Assistindo a tudo pelo reflexo do espelho, agora tingido de vermelho.


A história da terrível desgraça do casal Hornung percorreu a região, fazendo com que aldeões cochichassem sobre o maligno objeto, ao qual atribuíam a culpa do caso.

Até que os boatos chegaram aos ouvidos de um excêntrico visconde, famoso por colecionar objetos raros.

Ele arrematou o objeto e ficou fascinado no primeiro momento que o encarou no meio da sua sala de visitas. O rico acabamento da moldura e a perfeita imagem que refletia. Já não tinha mais qualquer marca do crime que presenciara, mas rescendia às ervas usadas para limpá-lo antes da entrega.

         Era um objeto tão belo, que o visconde se recusou a deixá-lo escondido em algum quarto, ordenando que fosse pendurado na própria sala de visitas, em frente ao sofá.

         Era um homem jovem, herdeiro de grande fortuna, que perdera os pais cedo, sendo o único remanescente da família Schock.

Não apenas era rico, mas também possuidor de uma aparência estonteante. Cabelos negros como as penas de um corvo e olhos no mesmo tom e profundos, a pele levemente amorenada pelo passatempo da caça e um corpo bem desenvolvido pelo mesmo, largo e longilíneo.

Por tudo isso era considerado um bom partido, cobiçado por todas as jovens donzelas da região.

Entretanto nenhuma delas se mostrava capaz de conquistar o coração do visconde, que mantinha em segredo e absoluto sigilo sua fascinação por outros jovens.

Usava sua bela aparência e influência para seduzir seus amantes. Levava-os para sua residência e com eles praticava todo o tipo de perversão a que estivessem dispostos.

Jamais ia além da sala de visitas. Saboreava suas vítimas na frente do espelho que tanto lhe fascinava. Encontrando especial prazer em assistir os atos realizados, no reflexo frio da superfície de cristal.

Durante vinte anos o objeto presenciou cenas das incontáveis orgias que se desenrolaram em sua frente, absorvendo cada imagem e os elogios ao corpo de seu dono e ao modo como ele o movimentava.

Porém tais cenas tornavam-se cada vez mais raras, enquanto os sibilares dos servos sobre as ações de seu senhor ganhavam volume.

O visconde Schock sentia seu espirito sugado, em atos cada vez mais vazios. Afastara amantes, apenas pensando em prazeres imediatos e agora se via a cada dia mais só, com a decadência de suas formas, tornando-o cada vez menos atraente.

Foi numa madrugada gelada de inverno que o visconde tomou sua decisão derradeira. Indo até a sala onde antes gozara de tanto prazer e bons momentos, posicionou-se no mesmo sofá, encarando seu reflexo no espelho que os criados mantinham impecavelmente limpo e polido.

Observou o reflexo que parecia zombar dele. Os cabelos agora grisalhos, com grandes entradas em sua testa, as marcas da idade por todo seu rosto e o corpo agora aparentando magreza e fragilidade.

Ergueu o cálice onde depositara sua última bebida e brindou a imagem decrépita que o encarava de volta, antes de beber todo o conteúdo.

A superfície lisa observou a vida deixar o corpo de forma dolorosa, o engasgar causado pelo veneno e os espasmos do corpo em luta, até o solitário fim.


Devido a ausência de herdeiros, os objetos do visconde foram repartidos entre a realeza e o clero.

O espelho foi entregue, junto com outros objetos raros e preciosos, ao monarca daquele reino, famoso por sua justiça e honra.

Recém-casado com a princesa de um reino vizinho, que o fascinara devido a gentileza e a doçura de seus atos e voz. Mostrava-se mais generoso do que nunca, fazendo com que fosse ainda mais amado por seus súditos.

Observava a entrega dos objetos junto de sua amada rainha, quando lhe mostraram o espelho que, de pronto, o fascinou pela magnificência dos detalhes.

Para sua surpresa, sua esposa se encolheu diante do objeto, como se tentasse impedir que capturasse seu reflexo.

- Meu marido, eu te peço, por favor, afaste este objeto de nós, pois não me sinto a vontade próxima a ele.

Tão raro era sua esposa lhe pedir qualquer coisa, que não hesitou em acatar ao aparente capricho, ordenando que o espelho fosse deixado em um dos muito aposentos vazios do castelo.

Durante muito tempo, o objeto permaneceu guardado, vindo a ser esquecido.

Entretanto um dia, pouco após dar a luz a primeira criança do casal, a rainha caiu vítima de uma doença misteriosa.

Médicos, sábios e curandeiros de todo o reino foram chamados, porém nenhum se mostrava capaz de encontrar uma cura para a rainha ou sequer os motivos da doença.

Durante todo tempo, a despeito do desconhecimento sobre o mal que acometia a rainha e o medo de ser contagioso, uma jovem serva se manteve cuidando dela.

Tinha olhos verdes como esmeraldas, faiscantes com astúcia, cabelos longos da cor da palha e pele rosada como as pétalas de uma rosa.

- Meu senhor. – Ousou falar certa vez em que o rei visitava os aposentos de sua amada, enquanto cuidava dela.

Ele se mostrou surpreso pela criada lhe dirigir a palavra, mas tinha imensa gratidão por ela, tão bela e jovem, se manter leal a sua esposa em hora tão dolorosa. Então, permitiu que prosseguisse.

- Meu rei, imploro que não me julgue ousada. Porém, poderia lhe pedir um aposento mais próximo aos da rainha? Não peço por cobiça, majestade. – Afirmou, unindo as mãos em forma de prece. – Mas Seria mais fácil cuidar da rainha se estivesse sempre por perto.

Encantado pela prestatividade da criada, que há pouco chegara no castelo e já se mostrava tão leal, o rei não teve dúvidas em atender seu pedido.

No mesmo dia, ela fez sua mudança para um dos aposentos inutilizados do castelo, carregando uma pequena trouxa de roupas e um baú revestido em couro, que mantinha trancado e longe dos olhares de todos.

Entrando no amplo espaço do cômodo, passou a ponta dos dedos pelo tecido macio do lençol que cobria a grande cama, antes de olhar na direção da penteadeira que ficava próxima a janela e sorrir para seu reflexo no enorme espelho acima dela.

Soltando seus cabelos das tranças de serviçal, sentou-se em frente a ele, admirando sua aparência, antes de murmurar:

- Fala mágico espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?

Não fingiu surpresa, ao assistir seu reflexo sumir da superfície de cristal, substituído por uma máscara branca e sorridente que, com uma voz rouca como o som de cacos de vidro, lhe respondeu:

- Não, minha dama, de todas as mulheres que existem no mundo, tu és a mais bela.


Fim.

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