quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Hora do Adeus.

Imagem de HuntressToTheMoon, localizada no Devianart e editada por mim. Caso haja problemas de Direitos Autorais ou uso, favor entrar em contato.

         Pensava que seria doloroso, como se uma lâmina rasgasse seu peito ou costas, mas ao invés disso apenas sentiu um perfume doce tomar o ambiente. Sentiu seu corpo entorpecer, parecendo que asas de borboleta acariciavam toda sua pele e então se viu livre, sem mais qualquer dor ou peso.

         Abriu os olhos, sem sequer ter percebido que os fechara, e viu a cena a sua frente, como se desenrolasse por trás de um vidro embaçado.

         Sua família estava em torno da cama onde passara as últimas duas semanas e o som do apito dos aparelhos, avisando que o coração não mais batia, parecia ecoar de muito longe, embora tivesse a impressão de que bastava esticar o braço para tocar na cena.

         Sentiu um aperto no coração, vendo sua mãe abraçar seu avô em ,lágrimas, enquanto sua irmã caçula se debruçava sobre seu corpo.

         Era doloroso demais vê-los assim, pensar que não mais estaria próximo a eles. Tão de repente tudo acabava e parecia tão sem sentindo. Não tinha sentindo, não era justo.

         Sem querer aceitar os fatos, preparou-se para dar um passo, determinado a voltar. Porém antes que conseguisse se mover, sentiu o aperto firme em seu braço. Não era doloroso ou rude, apenas forte e seguro, não permitindo que prosseguisse.

         Observou o ser que lhe segurava, vendo-o finalmente com clareza. Esperava uma caveira assustadora, com um manto negro gasto e foice, mas em sua frente estava um homem alto e forte, de feições jovens, mas rígidas.

         - Você já não pertence mais a este lugar. – Sua voz era grossa e fria, sem dar espaço para argumentação.

         Olhou fundo nos frios olhos prateados, o cabelo de mesma cor tinha um brilho sobrenatural sedutor e intimidante, balançando apesar da ausência de vento, tal qual a curta túnica negra que ele vestia.

         Pensava que sentiria medo, mas a verdade era que o ser não lhe parecia estranho. Quase como se recorda-se de tê-lo encontrado antes, entre as brumas da noite, mas nestas situações tinha a nítida sensação de que, diferente de agora, o ser brilhava em tons de dourado.

         A despeito da ausência de corpo, sentia, mas não tinha tempo de pensar sobre isso, a sensação de um nó se formava em sua garganta.

         - Não é justo. – Tentou argumentar. – Nenhum deles merecia esse sofrimento. – Falou, tornando a olhar para a família que pranteava seu corpo.

         O ser apenas observou em silêncio, os olhos frios transparecendo genuína curiosidade.

         - Você me culpa. – Falou por fim, parecendo surpreendido, mas sem qualquer tom de dúvida.

         - Não deveria? Eu era jovem ainda, tinha muito que viver! Minha mãe já passou por tanta coisa, por que ter que sofrer com a dor de me perder? E a minha irmãzinha, o que será dela? – Eram tantas as perguntas, uma revolta tão grande diante da constatação de que não sabia nada. – Qual o sentido de tudo isso?

         - Eu não tenho culpa em seu sofrimento, pelo contrário meu trabalho é encurtá-lo. – Sentiu raiva em ouvir o ser responder como se falasse do tempo, mas não conseguiu interrompê-lo. – O sofrimento de vocês vem da incapacidade de aceitarem que tudo tem um fim. Com o tempo esqueceram-se dos ciclos e passaram a achar que tudo existe para servi-los, sem lembrar que a natureza é cíclica e tudo que começa, um dia acaba.

         - Mas não era o meu momento! Eu ainda tinha muito o que viver! – Contra argumentou, recusando-se a entender o que o ser falava.

         - Você pode não aceitar e lutar o quanto quiser, mas este era o seu momento, portanto eu vim. Reflita sobre sua vida e escolhas e verá que tudo apenas seguiu seu curso.

         Queria negar e discutir, teimar e dizer que não podia ser assim, mas fazia sentido. Sabia que o ser estava certo em cada palavra e que trilhara a estrada até ali pela própria conta.

         - Mas não faz sentido, por que minha família tem que passar por esse sofrimento?! – Sentia-se frágil e impotente, querendo gritar e chorar, mas como se uma anestesia impedisse.

         - Eles têm suas próprias estradas a seguir ainda, cada qual em seu ritmo. Sentirão sua falta, mas deveriam aprender a sentirem-se gratos pelos momentos que tiveram ao seu lado, guardá-los na memória e aceitar que um ciclo se encerra.

         - A vida humana importa tão pouco para você? Temos tão pouco valor que nossas vidas são apenas um ciclo? – Não era justo, não era assim que devia funcionar. Aprendera que era tão relevante a vida inteira e agora, em seu momento mais frágil, vinham lhe dizer que sua vida era apenas mais uma.

         - Toda a vida é importante. – Respondeu simplesmente, inabalável. – Qualquer animal, planta e demais seres vivos, todos tem o seu papel. Em algum momento os homens esqueceram-se de que faziam parte de algo muito maior do que eles próprios e aí começou o seu sofrimento. Você me culpa pela dor de seus parentes? Não sou eu que os faço sofrer, eles sofrem por constatarem que não são tão especiais quanto quiseram acreditar, é a arrogância que os faz sofrer.

         - Eles sofrem, porque sentem falta de mim! – Gritou, sentindo toda a frustração acumulada explodir.

         - Sofrem porque esquecem que fazem parte de um todo, que tudo que existe esta conectado e portanto, mesmo que você abandone o plano em que eles habitam neste momento, continuara próximo a eles. Agora, vamos? – Perguntou, estendendo a mão em um convite.

         Começou a esticar o braço para aceitá-lo, quando lhe veio outra questão, parando seu movimento no ar e tornando a abaixar a mão:

         - Talvez... Talvez esteja certo, mas nem todos morrem pelas próprias escolhas. O que diz as vítimas de acidentes e da violência?

         Precisava perguntar, não sabia se teria outra oportunidade de adquirir respostas. O ser permanecia com o rosto inexpressivo, apenas os olhos refletindo curiosidade e sabedoria, sem qualquer traço de compaixão ou julgamento.

         - Todos vivem por suas próprias escolhas e trilham seus caminhos a partir delas. Mortes violentas ocorrem em sociedades violentas, acidentes acontecem em sociedades imprudentes, com pessoas egoístas, inconsequentes e que não costumam pensar nos outros. Quem vive nestas sociedades contribui para estes comportamentos, portanto também são responsáveis pelos resultados.

         Era tão frio, que chegava a ser cruel. Porém isso não tornava menos justo. Deixando de lado a arrogância construída em cima de um sentimento de falsa superioridade, era apenas lógico acompanhar a linha de raciocínio. Não era consolo para quem sofria a perda de uma pessoa querida, mas não se podia negar que era apenas natural.

         Estranhamente, isso lhe deixava mais leve. Perceber que não era algo de tão esplêndido, que era apenas outro ser vivo, vivendo e desfrutando das possibilidades de estar naquele mundo, naquele momento, parecia tirar um peso de seus ombros, como se a vida inteira tivesse carregado uma expectativa inatingível e finalmente entendesse que cumprira bem o seu papel, por apenas viver, buscando ser feliz.

Diante dessa constatação surpreendia-se em perceber que, sim, fora feliz. Deu e recebeu amor, rira e chorara, conquistara algumas coisas e perdera outras. Isso era vida, era natural e lamentava apenas, talvez, não ter aproveitado mais, por só agora perceber que isso era o suficiente.

         - Uma última questão? – Pediu, sentindo-se encolher, quando o ser lhe deu um olhar enfadonho. – Para onde vou agora?

         Ele apenas abaixou a cabeça, parecendo cansado de ter de sempre responder essa questão.

         - Para onde você quiser. – Falou simplesmente, tornando a estender a mão.

         Dessa vez não hesitou em segurá-la, sentindo uma segunda vez que borboletas pareciam passear por toda sua pele, enquanto o ser abria imensas asas, prateadas como o luar e o envolvia, levando-o para onde sempre achara que deveria ir.

Fim.

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