quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Estripador de Lua Vermelha.

Imagem localizada no google e editada por mim. Caso haja problemas de Direitos Autorais ou uso, favor entrar em contato.

         A Vila da Lua Vermelha era famosa em todos os Sete Reinos por ter conseguido o impossível: Paz entre humanos e vampiros. Diferente dos outros reinos, na pequena vila firmara-se um acordo, chamado Aliança: A cada ciclo lunar, 13 jovens seriam entregues ao clã vampírico para que os alimentassem, devendo retornar no ciclo seguinte, quando um novo grupo os substituiria. Em troca, o clã protegeria os humanos de qualquer ameaça, inclusive de outros monstros.

         Durante séculos a Vila gozou de paz e abundância até que começaram a se espalhar boatos de assassinatos. Segundo as histórias, três corpos já tinham sido encontrados em becos, com os troncos dilacerados como se houvessem sido rasgado com garras.

          Não se podia afirmar se os vampiros do clã cansaram das porções de alimento controlada ou se algum monstro conseguira ultrapassar suas defesas, porém, tudo indicava que os tempos de paz em Lua Vermelha estavam chegando ao fim.

         A moto negra cortava a irregular estrada de terra, com o ronco de seu motor, quebrando a harmonia silenciosa da floresta.

         Sentindo seu corpo vibrar sobre o veículo, a motociclista, toda vestida em couro preto, acelerava ansiosa para chegar ao seu destino.

         Na entrada na vila nenhum dos guardas de armadura escura a pediu para parar, pois o selo da lua rubra com um crescente dourado, que brilhava de forma bruxuleante na luz do fim de tarde, indicava que alguém de alto escalão a chamara.

Reduzindo a velocidade após cruzar os grandes portões de ferro, cruzou as ruas estreitas, ladeadas por casas de pedra, de aparência simples e confortável, subindo até atingir a praça central da Vila. À esquerda havia uma imensa mansão de paredes púrpuras escuras, protegida por altas grades negras. À direita, um templo dedicado a Mãe Lua, Deusa guardiã da vila e em frente, um imenso prédio horizontal de 04 andares, com grandes janelas, onde trabalhavam o Conselho Administrador e seus funcionários. Parou em frente à fonte, no centro da praça, estacionando a moto ali.

Tirou o capacete permitindo que os fios cinzas, quase prateados, de seus cabelos cacheados serpenteassem até o final de suas costas. Espreguiçou- se, sentindo suas juntas estalarem de modo agravável, após o corpo permanecer horas na mesma posição.

Sua audição aguçada permitia ouvir os comentários dos moradores da vila que a observavam com os cantos dos olhos. Sabia que seus cabelos chamavam a atenção, mas os olhos dourados é que não deixavam dúvida sobre o que era.

Não olhou diretamente para ninguém na caminhada para o prédio da administração. Apresentou a carta que recebera e foi conduzida até o último andar. Onde Pediram que aguardasse numa sala de espera ricamente decorada.

Menos de cinco minutos depois, uma jovem de rosto redondo, com jeito sonhador e sorriso simpático, pediu que entrasse, pois o secretário de segurança a aguardava.

A sala era grande, com um sofá de aparência gasta, mas confortável, em um canto. Onde um adolescente estava deitado de modo despojado. Estantes repletas de livro e uma grande mesa de madeira escura, em frente a um mapa de toda a Vila.

Sentado atrás da mesa, um senhor magro e calvo com astutos olhos escuros, se levantou estendendo a mão para cumprimentá-la.

- Senhorita Napelo presumo? – Falou, sua voz rouca e envelhecida, como se tivesse um punhado de cinzas na boca.

A mulher estendeu a mão, retribuindo o cumprimento enquanto farejava discretamente o ar. O homem era inegavelmente humano porém, mesmo em uma sala tomada pelo cheiro de papel velho, poeira, whisky barato e suor, notou que o garoto no sofá não era, sentindo seu corpo tencionar e evitando deixar transparecer.

- Pode me chamar de Amaryllis. – Respondeu, esforçando-se em parecer agradável, enquanto dava um meio sorriso que não atingia seus olhos.

Ouviram o garoto no sofá soltar uma baixa risada debochada, fazendo com que a mulher o olhasse de canto de olho, enquanto o senhor pareceu ficar desconfortável.

- Sou o secretário de segurança de Vila Vermelha, Alberto Souza, espero não tê-la constrangido.

Ela apenas balançou a cabeça em negativa, expandindo o sorriso e fechando os olhos, no que esperava ser uma aparência amigável.

- O senhor não cometeu erro algum, apenas minha mãe tinha um péssimo senso de humor.

O garoto no sofá riu mais alto, fazendo com que a mulher o olha-se diretamente, com uma mistura de raiva contida e curiosidade. Porém, logo voltou sua atenção ao secretário, quando este pigarreou e a convidandou a se sentar indicando uma das cadeiras de madeira em frente à mesa.

- Bem, bem, Senhorita Amaryllis, acredito que tenha ouvido falar dos  trágicos assassinatos que ocorreram em nossa vila. – O homem falou sem desviar o olhar dela por nenhum instante. Que apenas confirmou, com a cabeça, assumindo uma expressão totalmente séria. – Faz séculos que nada do tipo ocorre por aqui! Lua Vermelha é tão segura, que até nossas taxas de roubos são mínimas. O clã Lune Rouge sempre nos protegeu. – Afirmou, desviando rapidamente o olhar para o sofá. – Portanto a senhorita há de compreender o porquê de recorrermos a ajuda... Especializada, neste caso.

Amaryllis riu pela escolha de palavras do secretário.

- Vilas, cidades e até reinos frequentemente buscam o tipo de ajuda “especializada” em casos como este. – Repetiu o termo, fazendo questão de gesticular aspas com os dedos. – A questão é por que escolheram a mim?

O senhor chegou a abrir a boca para responder, porém foi interrompido pelo garoto que levantou-se do sofá,  batendo os pés no chão de modo ruidoso, chamando atenção para si.

- Esta foi uma exigência nossa, senhorita Napelo. – Falou, deixando deslizar cada sílaba do sobrenome dela, como se tivesse um sabor doce em sua língua. - Gustavo, do Clã Lune Rouge, é um prazer finalmente conhecê-la. – Concluiu em um tom animado, que deixava sua voz de tenor quase infantil, enquanto fazia uma reverência.

Finalmente, Amaryllis se permitiu olhar diretamente para o garoto. Era pequeno e magro, com traços quase infantis, os cabelos ruivo alaranjados eram um pouco compridos e formavam cachos que emolduravam o rosto, dando-lhe um ar angelical, sua pele era extremamente pálida, os lábios muito rosa e cheios pareciam não combinar com o resto das feições delicadas, ao mesmo tempo que reforçavam a aparência de fragilidade quase feminina. A única coisa que o denunciava era o intenso brilho sobrenatural dos olhos muito azuis.

         - O acordo entre a vila e o clã é famoso em todos os reinos, quando foi levantada a necessidade de chamarmos um especialista, eles exigiram que fosse a senhorita. – O secretário de segurança explicou, em um tom que deixava entrever alguma insatisfação com a escolha.

         - Podemos dizer que as suas características únicas nos fazem crer que seria menos radical que outros exterminadores. – O jovem vampiro falou de modo animado, com um enorme sorriso, ainda que usando o efetivo nome de sua profissão.

         Diante das palavras, a mulher se permitiu abrir um meio sorriso debochado, deixando um pequeno brilho feroz transparecer em seus olhos dourados por trás da máscara de simpatia que até então usara.

         - Poderão constatar terem cometido um engano quando já for tarde demais... – Falou, incapaz de conter as palavras.

         - Não, acho que definitivamente chamamos a pessoa certa. – O jovem vampiro retrucou, de modo tão alegre e satisfeito que era quase desconcertante.

         Dando um novo pigarro, o secretário de segurança chamou atenção de volta para si.

         - Pois bem, senhorita Amaryllis, por favor, faça o seu trabalho e descubra quem ou o que esta assassinando nossos cidadãos. O senhor Gustavo a acompanhara e será o seu guia, durante sua estadia na cidade.

         “O que?!”, gritou em sua mente, enquanto encarava o vampiro de aparência adolescente que lhe exibia um largo sorriso.

         - Eu agradeço, mas, realmente, prefiro trabalhar sozinha. – Tentou argumentar.

         - Infelizmente, creio que isto não será possível senhorita. Não podemos permitir que pessoas de fora tenham livre acesso aos documentos sobre nossa vila e população, ainda mais... – 
Interrompeu a fala, percebendo que quase falara algo indevido.

         Porém a exterminadora conseguiu ouvir perfeitamente o “alguém do seu tipo” no silêncio do secretário.

         - Oras, vamos, Amaryllis, tenho certeza de que iremos nos divertir muito! – Gustavo falou, ainda com o sorriso como o do gato de Cheshire, que deixava a mulher tão desconfortável.

         - Se não há outra maneira. – Concluiu, percebendo que por mais benéfico que pudesse ser o trabalho para sua carreira, ele seria mais difícil do que previra.

Saindo da sala do secretário, Amaryllis se espreguiçou, sentindo novamente suas juntas estalarem. Estava exausta, mas não tinha tempo a perder.

- Muito bem, me mostre onde fica o necrotério. – Falou, perdendo qualquer traço da simpatia que fingira até então.

Parecendo não ser afetado pela falta de modos da exterminadora, o vampiro apenas abriu um novo sorriso.

- O que? Você quer ir lá agora? Sério? – Se conheceram há menos de quinze minutos e a mulher já sentia vontade de agredi-lo cada vez que abria a boca. – Quero dizer, você viajou quantas horas para chegar aqui? Deve estar exausta, né?

Suspirando, Amaryllis passou uma das mãos pelo cabelo, tirando os fios que caiam em seu rosto, antes de olhar diretamente para o vampiro, dando um sorriso feroz, que sabia deixar a mostra seus caninos afiados.

- Yeah, tem razão, eu estou exausta. Mas quanto mais rápido eu resolver esse caso, mais rápido posso ir embora dessa vila cheia de sanguessugas e hipócritas e mais rápido me livro de você! – Concluiu, abrindo ainda mais seu sorriso.

Era isso, agora toda aquela fachada de garoto bonzinho cairia por terra e ele demonstraria o que realmente pensava dela, deixando-a livre para parar de fingir ser uma moça educada e legal.

Porém, para sua surpresa, Gustavo apenas gargalhou alto, fechando os olhos e expandindo ainda mais, se fosse possível, o sorriso idiota.

- Como eu disse, Napelo, iremos nos divertir juntos.

Fechou as mãos em punhos, bem apertado, chegando a sentir a ponta das unhas afiadas rasgarem sua pele, e falou entre dentes:

- O meu maldito nome é Amaryllis.

- Sua mãe realmente não pegou leve com você, não é, Belladonna? – O vampiro gargalhou novamente, ouvindo-a rosnar. – Vamos, o necrotério fica por aqui. – Concluiu com tranquilidade, apontando o caminho por onde seguiu sem olhar para trás.

Respirou fundo três vezes, tentando recuperar a calma antes de segui-lo e pensando que devia ter cobrado mais caro.

No lado oposto à sala do secretário, no segundo andar do prédio, ficava o pequeno necrotério da vila, parte do posto médico que ocupava toda a área direita dos dois primeiros andares do prédio da administração.

O ambiente era tão branco que chegava a fazer os olhos doerem, mesmo sob a luz fraca dos lampiões a gás.

Franzindo o nariz para o cheiro forte de produtos de limpeza e carne em decomposição, a exterminadora se aproximou da mesa onde uma médica lia informações em uma prancheta com atenção. Batendo as unhas no tampo de ferro para se fazer notar, falou:

- Boa noite. Fui chamada para investigar os casos de assassinato. Gostaria de ver os corpos das vítimas, por favor? – Falou com suavidade, sustentando um pequeno sorriso amigável, que fazia suas bochechas doerem.

A médica demorou alguns instantes, o suficiente para fazer Amaryllis se sentir ridícula, antes de erguer os olhos da prancheta e olhá-la de cima a baixo, parecendo entediada.

- Então, realmente, a chamaram? – A mulher falou, torcendo a boca em desagrado. – Como se já não tivéssemos problemas o bastante... O que uma abominação como você pode fazer?

Era isso, havia apenas um tanto que uma pessoa podia aguentar em um único dia. Sentindo como se um fio se partisse em seu interior, Amaryllis deixou que suas unhas se tornassem garras, antes de, com um rosnar, segurar a médica pelo pescoço e prensá-la contra a divisória de vidro que separava a área da recepção do necrotério, do laboratório.

- Para começar, eu posso arrancar sua cabeça antes que o nosso amigo dentuço ali consiga me impedir. – Sua voz soava como rosnados e ela não estava orgulhosa de si mesma, mas o olhar de medo da médica fez com que uma sensação prazerosa se desenrolasse em seu interior, como um gato se espreguiçando.

         Por um instante, ela olhou para o vampiro que a acompanhara e notou, surpreendida, que ele apenas assistia a cena com um pequeno sorriso, parecendo se divertir com toda a situação. Fazendo uma nota mental de retornar a aquela atitude mais tarde, voltou-se para a médica.

         - Agora, eu tive um dia extremamente longo, onde estão os corpos?

Tendo dificuldade em respirar, a médica apenas murmurou o número das gavetas, apontando para a porta de acesso ao laboratório.

- Muito obrigada. – Agradeceu a exterminadora, voltando ao sorriso gentil e voz agradável de antes, que pareceram deixar a médica ainda mais assustada.

Estava abrindo a gaveta do primeiro corpo, quando ouviu os passos de Gustavo se aproximando. Ele deu um assovio, antes de falar:

- Quem diria que era preciso tão pouco para te tirar do sério, hein?

Passados os efeitos da raiva, sentiu-se corar diante do comentário, a vergonha formando um bolo amargo em sua garganta.

- Não é. – Se viu explicando, antes que pudesse pensar. – Normalmente eu ignoraria ela e faria meu trabalho, sem me importar com a opinião dos outros, mas estou tão cansada e... – Interrompeu sua fala, sentindo uma nova onda de raiva e puxando, com força, o lençol que cobria o corpo. – Por que eu estou me justificando para você? - Perguntou de forma amarga, voltando-se para a vítima.

O vampiro apenas riu.

- Não é culpa sua, é que eu tenho essa habilidade, sabe? Eu consigo perceber como as pessoas estão se sentindo e me conecto com as emoções delas. Elas ficam confortáveis e acabam se abrindo comigo.

- Não use seus poderes de sanguessuga em mim! – Rosnou a exterminadora, enquanto analisava o corpo.

Não era uma cena bonita, mesmo tendo sido limpo, a brutalidade dos rasgos era notória, pelo quanto a pele havia sido dilacerada, não fora um corte limpo e pelo estado dos órgãos internos, o assassino não se preocupara em atingir algo específico, apenas cortando e puxando tudo em seu caminho. Também não havia qualquer marca de presas que pudesse identificar.

- Não foram vampiros que fizeram isso.

- Ding, ding, ding! – Gustavo imitou um sino, como quando alguém acertava um prêmio em uma barraca de quermesse. – Ela acertou de primeira!

A mulher franziu o cenho, irritada com o deboche.

- Se vocês sabem disso, porque afinal eu estou aqui? – Havia poucas coisas que ela odiava... Mentira, na verdade tinham muitas coisas que ela odiava, mas uma das principais era ser feita de palhaça.

- Oh, claro! Se os membros do único clã vampírico na cidade dizem que não foram vampiros que cometeram os assassinatos, as pessoas que são contra a Aliança definitivamente vão acreditar e não tentar usar isso como argumento para iniciar uma guerra. Eu pensava que você era inteligente...

Amaryllis pensou em se irritar com o tom sarcástico, mas as palavras dele chamaram sua atenção.

- Espera, então há pessoas em Lua Vermelha que são contra a Aliança?

- Ela não erra uma, minha gente!

- Pare de debochar! – Rosnou. – Estou falando sério, não se ouve falar disso em nenhum lugar dos reinos. Todos pensam que Lua Vermelha é uma terra encantada, onde humanos e vampiros convivem em harmonia, fazendo orgias e afins.

- Quem me dera, faz séculos que não participo de uma boa orgia. – O vampiro retrucou, com um sorriso malicioso.

- Você tem o que, 13 ou 14 anos? – A mulher perguntou sentindo-se enojada.

- Uhum... Faz uns três séculos que tenho 14 anos. – Respondeu com tranquilidade, olhando-a diretamente.

Sentiu-se arrepiar ao ver o brilho no olhar dele se intensificar, fazendo com que sentisse como a mera presença daquele garotinho a oprimia. Finalmente dando-se conta de que, independente da aparência, o ser na sua frente devia ser muito mais poderoso do que ela.

- Você... Você podia ter me impedido facilmente de atacar a legista...

- Uhum. – Ele apenas murmurou, o sorriso em seu rosto não mais alegre e infantil, mas totalmente predatório.

- Então, por que você não...?

- Por que eu deveria? Ela foi extremamente rude. Além do mais, eu queria ver até onde você iria, às vezes gosto de assistir.

         - Arght, você é repulsivo! – Exclamou, sentindo-se extremamente incomodada por alguém com a aparência de uma criança conseguir deixá-la tão desconfortável.

         Gustavo apenas gargalhou, voltando a mesma atitude de antes, como se nada houvesse acontecido.

         - E o que mais, além do óbvio, a grande exterminadora descobriu?

         - Os cortes foram feitos por lâminas e não por garras. – Disse, sorrindo satisfeita ao vê-lo arregalar os olhos em surpresa. – O que? O olfato dos vampiros não é bom o suficiente para identificar que há muito mais ferro no corpo dele que o normal? – Tornou a jogar o cabelo para trás, sentindo que as coisas voltavam à normalidade, com ela fazendo um excelente trabalho e os idiotas chocados com o quão boa ela era. – Além disso, pela forma como a pele foi rasgada, o atacante não era tão forte. Definitivamente, o assassino é humano.

         Em um piscar de olhos, o vampiro atravessou o espaço que os separava e a segurou firme pelos braços.

         - Você pode afirmar isso com toda a certeza?! – Tamanha era a excitação, que ele chegava a ofegar, embora não precisasse efetivamente de ar.

         - Bem, é o lógico a se pensar, porque claramente foi feito com a intensão de que parecesse obra de um monstro, mas por alguém que não tem a força de um. Então, a menos que seja um monstro se passando por um humano, que tenta se passar por um monstro... É de 99% a chance de ser um humano. – Ela falou, tão surpreendida pelas atitudes do vampiro, que mal sabia como reagir.

         - Oh, Amaryllis, você sabe o que isso significa?! Se foi um humano, o clã não tinha como impedi-lo, pois a Aliança só nos obriga a proteger a vila de outros seres sobrenaturais!

         Nunca vira um vampiro tão feliz em constatar que não teria que matar humanos, mas ou Gustavo era um excelente ator ou a noticia realmente o alegrara.

         - Certo, agora temos que descobrir a identidade dessa pessoa.

         - Oh... – Gustavo voltou a seu jeito normal de agir, finalmente soltando-a. – Bem, você não pode farejá-lo?

         Uma pequena frase e qualquer simpatia sentida pelo vampiro nos trinta segundos anteriores, acabava de ir pelo ralo.

         - Não, eu não posso “farejá-lo”, porque eu não sou um maldito cachorro! – O vampiro apenas ergueu uma das sobrancelhas, em deboche. – Além disso, usaram tantos produtos químicos que eliminaram qualquer possível cheiro que o assassino tivesse deixado. - Concluiu desviando o olhar, insatisfeita em reconhecer que, se não fosse por isso, poderia seguir a pista do assassino, como um maldito cão.

         O vampiro ficou em silêncio por alguns instantes, como se refletisse, antes de voltar a falar:

         - Certo, então amanhã nós iremos até o setor de evidências e pedimos para ver as roupas das vítimas, elas podem conter o cheiro do assassino, não?

         Amaryllis olhou para o ruivo, surpreendida que não tivesse pensado nisso por conta própria.

         - Certo. – Respondeu, incrédula de que o caso poderia se resolver de maneira tão fácil.

         Saindo do necrotério, sendo seguida por sua nova sombra ruiva, de um metro e sessenta, não pode deixar de perguntar.

         - As vítimas tinham algo em comum?

         - Hum, não muito... A primeira garota era filha de um ferreiro, da parte mais baixa da vila, o rapaz tinha acabado de entrar para a ordem sacerdotal da Mãe Lua e a segunda era filha do cobrador de impostos. A única coisa que os unia é terem sido ofertas há 39 luas.

         Dessa vez foi a mulher que parou, segurando o vampiro pelos ombros.

         - Todas as vítimas fizeram parte do mesmo grupo enviado para alimentar vocês três anos atrás?! – Gustavo acenou a cabeça afirmativamente, sem entender onde ela queria chegar. – Por acaso você não considera essa uma informação relevante?! O assassino pode estar indo atrás de todos os jovens que serviram naquele ciclo lunar!

         - Em pensar que eu duvidei da sua genialidade...não me diga?! – Provocou o vampiro, fazendo pouco caso, enquanto empurrava as mãos que o seguravam.

         - Alguma providência foi tomada para a segurança dos outros? – Perguntou, voltando a perder a paciência com os deboches.

         - Óbvio que sim! Desde a terceira morte, um membro do clã esta montando guarda na casa de cada um dos nove restantes.

         Sentiu-se tranquilizar por um instante. Se estava certa sobre o assassino ser humano e se as vitimas eram realmente os jovens enviados naquele ciclo lunar, a presença dos vampiros o intimidaria de continuar. Sentindo-se aliviada, repetiu as palavras de Gustavo em sua mente, tendo um estalo.

         - Nove restantes?

         - Sim. – confirmou parecendo chateado com o fato. – O décimo membro do grupo, Elisa, morreu 13 luas atrás, devido a uma doença degenerativa. O pobre Alberto ficou arrasado.

         Amaryllis pensou na triste figura do secretario de segurança e sentiu dó de sua perda. Ele podia ser um babaca preconceituoso, mas ao menos tentara esconder isso, o que o tornava digno de um pouco de sua compaixão.

         - Amanhã vamos verificar as roupas das vítimas. – Falou, optando por cortar o assunto.

         - Sem problemas, nos vemos aqui no fim da tarde. – Confirmou Gustavo, antes de virar as costa acenando.

         A exterminadora grunhiu, constatando mais um problema que uma babá vampiro lhe traria. O secretário dissera que não poderia ter acesso aos documentos e evidências sem o vampiro. O que significava uma manhã inútil.

         Suspirou, voltando à sua moto, disposta a encontrar uma hospedagem.

         Conforme previra, a manhã seguinte foi quase inútil. Entrevistara as famílias e pessoas próximas às vítimas, apenas para constatar o que já imaginava: Nada as ligava, além de terem pertencido ao mesmo grupo de oferendas.

         Enquanto andava pela vila, ouvindo os cochichos das pessoas que achavam estar apontando-a discretamente, sentiu como se seu corpo inteiro pinicasse com a vontade de ir embora do local.

         Durante toda sua vida foi assim, ser uma “abominação”, como a médica legista a chamara, uma mestiça. Metade humana, metade licantropa. Significava não pertencer a lugar algum. Seu cheiro a denunciava a qualquer matilha, seus olhos, cabelo e tamanho a tornavam um ponto de referencia em qualquer vila ou cidade humana.

         Porém não podia reclamar, tinha sido escolhida para investigar os assassinatos, porque o clã Lune Rouge apostou em seu sangue sobrenatural, para que investigasse primeiro e atirasse depois. Agora era fazer tudo direitinho e previa belos trabalhos em seu futuro, do tipo que pagam bem.

         Deixaria de ser, Amaryllis Napole, aberração mestiça, para se tornar a melhor exterminadora dos Sete Reinos.

         Se ao menos a miniatura de vampiro que colocaram para vigiá-la chegasse logo...

         - Boa noite, Atropa! – Ela rosnou ao ouvir a nova piadinha com seu nome. – Me esperando há muito tempo?

         Respirou fundo, estava tudo bem, havia conseguido dormir na noite anterior, portanto não se deixaria afetar tão facilmente.

         - Mais do que o necessário, vamos logo com isso! – Falou, virando-se para entrar no posto da guarda da cidade.

         Dessa vez, conseguiram acesso as peças sem problema e entre o cheiro de sangue seco e ferro nas roupas destruídas, ela identificou o cheiro do assassino.

         Saindo do posto de segurança, a discussão ainda corria.

         - Você tem certeza disso? – Gustavo perguntou, pela terceira vez.

         - Você confirma tudo que disse lá dentro? – Perguntou de volta, recebendo um aceno de confirmação. – Então basta nos prepararmos.

         Para o descontentamento geral dos cidadãos de Lua Vermelha, o clã determinou que, tendo em vista não terem ocorrido novos assassinatos há três dias, a rotina de patrulhamento voltaria ao normal.

         A noite avançava, junto com a lua quase cheia que se erguia já no meio do céu. Na noite seguinte ocorreria a troca de tributos e todos aguardavam ansiosos, pois se os assassinatos não fossem desvendados, o grupo anti-Aliança ganharia força e podia ser o fim da paz na vila.

         Ele sentia as mãos suarem com o peso das garras de metal, tentando se mover sorrateiramente por entre as casas. Esta era sua noite, apenas mais uma vítima e os malditos monstros seriam banidos da vila, o acordo desfeito e finalmente estariam livres de servirem suas crianças para seres das trevas.

         Arrombou a fechadura da porta traseira da residência e seguiu para o quarto do jovem. Desta vez não conseguiria emboscar sua vítima na rua, mas isso apenas serviria para deixar os cidadãos mais aterrorizados, descobrindo-se inseguros dentro de suas próprias casas.

         Entrou no quarto, tentando silenciar sua respiração ofegante. O coração sempre acelerava momentos antes do ato e ele repetia para si mesmo que apenas cumpria um dever, que não havia prazer em seus atos. Mentia.

         Vendo a forma magra do jovem sobre a cama, dormindo indefeso, recitou aos sussurros, como uma oração:

         - Uma última vez, por você, minha menininha. – Antes de erguer a mão com as garras.

         Jamais chegou a descê-la, sentindo um punho de ferro se fechar sobre seu pulso e puxar seu braço para trás, deslocando seu ombro.

         - Eu poderia matá-lo, mas então Lua Vermelha realmente teria um assassinato realizado por um ser sobrenatural, não é? – A voz era quase um rosnado e cortou toda a dor que o homem sentia como lâminas frias, enchendo-o de pavor.

         Em um canto escuro do quarto, um lampião foi aceso, deixando clara a face de Gustavo, que tinha um sorriso feroz, parecendo rasgar suas bochechas, os olhos brilhando como os de uma serpente.

         - Eu respeitei sua dor. – Sua voz era fria, séria, sem nenhum traço de infantilidade. – Respeitei sua perda, busquei entender seus sentimentos e essa é a paga que me dá? Assassina os seus e ameaça a paz da minha família!

         Tamanho era o pavor do homem, que seu corpo tremia, sentiu a urina ensopar suas calças enquanto lágrimas corriam por seu rosto. Em sua frente a forma implacável do vampiro, o assombrava mesmo sem deixar as presas a mostra e atrás de si a força terrível da mestiça, com os olhos dourados brilhando ferozes a luz das chamas.

         O jovem a quem planejara matar o olhava de sua posição na cama, encolhido, mas sem qualquer pena, quando Amaryllis começou a arrastá-lo para fora do quarto, seguida por Gustavo.

         Eles arrastaram o assassino até a entrada da casa, onde cidadãos começavam a se reunir devido ao barulho e aquele instinto humano natural, de pressentir quando algo incomum acontece.

         Jogaram o homem em meio à roda e este cambaleou alguns passos, antes de cair por sobre si mesmo, chorando e pedindo piedade.

         - Eis o seu assassino, cidadão de Lua Vermelha! – Bradou a exterminadora, chamando a atenção do povo. – Não um ser que chamam de monstro, mas sim um de vocês, cego pelo ódio e buscando culpados para suas tragédias!

         Não havia dúvidas, além do depoimento do jovem que seria assassinado naquela noite, o autor ainda vestia a luva de garras usada para cometer os crimes. Nem mesmo aqueles que se opunham a Aliança conseguiriam impor ao clã Lune Ruge a culpa pela violência.

         Vendo os guardas se aproximarem para efetuar a prisão, Gustavo provocou:

- Parabéns, Belladonna Acônito.

         Ao que a exterminadora forçou um rosnado, sem conseguir se sentir irritada ao som dos aplausos e gritos de celebração do povo que os saudava.

         - Eu realmente não gosto de você. – Sussurrou de volta, revirando os olhos ao ver o vampiro rir baixinho.

         Mais cedo, na sala de evidências dentro do posto de segurança. Antes que pudesse efetivamente se concentrar no cheiro vindo dos trapos que haviam sido as roupas das vítimas, o vampiro chamou sua atenção.

         Sentado no parapeito de uma das janelas da sala, ele olhava para a vila, quando perguntou:

         - Sanguessugas hipócritas, é assim que todos os vampiros se parecem para você?

         Ela parou o que fazia e olhou para ele, surpreendida pelo tom de voz sério e quase melancólico do vampiro.

         - Eu não disse isso. – Gustavo a olhou, sem entender sua resposta. – Disse que a vila era repleta de sanguessugas e hipócritas. O “hipócritas” se referia aos humanos.

         O vampiro riu, balançando a cabeça em negativa.

         - Todos os humanos são hipócritas para você?

         - A maioria. – Respondeu sem hesitar. – Especialmente em uma vila como essa. Eles morrem de medo de vocês, planejam modos de exterminá-los, ao mesmo tempo em que se gabam de serem muito evoluídos e conviverem pacificamente com vocês.

         - E isso te incomoda?

         - Muito!

         - Por quê?

         - Porque eu odeio hipocrisia!

         Gustavo riu novamente, não a gargalhada escandalosa que dava quando queria irritá-la, um riso contido, quase doído, que soava tão... real.

         - Nem todos eles são hipócritas, alguns realmente acreditam na vida pacífica que temos aqui e querem que permaneça. Aqui temos paz, comida farta, um pouco de hipocrisia parece um preço baixo a pagar.

         - Então, não te incomoda que eles te vejam como monstros terríveis?

         - Alguns vampiros são monstros terríveis. Alguns humanos também. Você age como se todos fossem atacar a qualquer instante, julga qualquer um que se aproxime, o que a torna diferente deles?

         Sem saber o que responder e irritada por isso, Amaryllis voltou-se para as roupas, buscando algum cheiro que identificasse o autor.

         Demorou mais do que se orgulharia, mas logo percebeu um cheiro que, não sabia como, lhe era familiar. Buscou em sua mente todas as memórias olfativas registradas, até que se lembrou em um estalo.

         - O secretário de segurança é contra a Aliança?

         Gustavo suspirou novamente, antes de responder.

         - Tornou-se um dos mais ferrenhos antagonistas há um ano.

         Lentamente, as peças começavam a se encaixar.

         - Não foi nessa época que a filha dele morreu?

         O vampiro acenou, tentando entender aonde ela queria chegar com o interrogatório, então, se encolheu diante do olhar acusatório que ela lhe lançou. Os olhos muito azuis perdendo um pouco do brilho, demonstrando real tristeza.

         - Pode parar de me olhar assim, nenhum vampiro tem culpa na morte de Elisa! Mas certamente teríamos evitado, se ela deixasse.

          A mulher continuou encarando-o, agora não mais o culpando com os olhos, mas demonstrando genuína curiosidade.

– Alberto sempre foi intimo do clã e quando diagnosticaram Elisa com a mesma doença que matara sua esposa, ele nos pediu que a transformássemos. Porém Elisa não quis, ela se apaixonou por um opositor da Aliança e preferia morrer humana a ser odiada por ele. Nós respeitamos sua vontade e Alberto jamais nos perdoou por isso.

         Ao final da história, Amaryllis já não o olhava diretamente, mas ele podia sentir a dor em seu coração.

         - Mas você estava na sala dele quando cheguei, bem confortável inclusive! – Questionou, tentando encaixar os detalhes.

         - Eu sabia que estava para chegar, precisava assegurar-me de que ele não enxeria sua cabeça de absurdos contra nós.

         Mais uma vez, ela acenou a cabeça em confirmação. Isso encerrava o caso.

         - As roupas tem cheiro de papel velho, whisky barato e suor, sei quem é o nosso culpado.

         O vampiro entendeu o que era dito.

         - Jamais acreditarão em nossas palavras, se não tivermos como provar.

         - Então faremos uma armadilha para ele. – Concluiu a exterminadora.


Fim.