quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Asas.



         Sentiu o peso dos olhares quando adentrou no salão, preferindo fingir ignorar os sussurros debochados. Sabia que não era bem vinda, mas não se importava, também não queria estar ali.

         Sentia-se aprisionada naquele ambiente, cercada por pessoas que pareciam tão vazias e pequenas. Houve uma época que o desprezo e palavras cruéis a machucaram, mas agora não significavam nada, nada além de um incômodo, como o constante zunir de um inseto.

         Os dias passavam devagar e arrastados, sem que entendesse o porquê de continuar sendo obrigada a suportar aquilo. Era como se estivesse acorrentada e amordaçada, como se sua voz jamais fosse ouvida. Em suas costas, um peso crescia e parecia que algo romperia a pele a qualquer momento.

         Durante anos negara quem era, tentara se parecer com eles, agir como eles, gostar do que gostavam, talvez assim fosse aceita, talvez assim se sentisse parte do grupo.

         Porém era em vão, a mediocridade não fazia parte de sua natureza. Era incapaz de vê-los atacar seres mais fracos e permanecer em silêncio, incapaz de ajudar a machucar alguém indefeso. Mesmo que essas mesmas pessoas viessem a tentar machucá-la depois.

Diversas vezes, ao tentar proteger alguém, os ataques se voltaram contra ela, sem que recebesse a mesma ajuda que oferecera.

         Lentamente, aprendeu a desconfiar, tornou-se reclusa. Se eles a viam como um monstro, um monstro seria, o mais terrível de todos!

         Tentou tanto ser cruel, ser fria, congelar seu coração de modo que as atitudes deles já não mais a afetassem. Isso também não funcionava, era contra a sua natureza ser vil, não importava o quanto a tratassem mal.

         Durante anos tentou entender; por que era tão diferente? Por que não podia ser como os demais e assim se poupar de tanta dor? Por que tinha que sentir com tanta intensidade? Por que tinha que se preocupar tanto?

         Não havia respostas, apenas a sensação de que tantas emoções e inadequação a sufocariam e o peso crescente em suas costas, tentando se libertar.

         Chegou a cogitar que não tivesse qualquer valor, se perguntando qual seria o propósito de uma existência tão doída. Perguntava-se porque permanecer existindo em um mundo em que parecia não caber, quando a solução, às vezes, soava tão mais fácil.

         Não que não houvesse quem tentasse ajudá-la, mas como poderiam, se ela mesma não entendia qual era o problema? Enquanto para os outros era natural agir de determinada maneira, para ela era absurdo, superficial e insuficiente. Talvez tivesse algum defeito ou apenas fosse egoísta demais, ávida por sentir o que ninguém mais sentia, sem que na verdade se visse como merecedora de algo especial.

         Lentamente, acabou por tornar a si própria superficial, incapaz de mergulhar nas emoções pelas consequências possíveis, pela dor que parecia sempre seguir a entrega. Se trancou em si mesma, por medo. Aceitou que a culpa era toda dela por ser tão esquisita.

         Carregou nas costas o peso das emoções contidas, das frustrações engolidas e da fúria abafada. Começou a acreditar que merecia o tratamento recebido e que jamais algo mudaria.

         Perdida na própria tristeza, demorou a ouvir as vozes que a apoiavam e a convidavam a se erguer. Demorou a perceber que, a despeito da multidão cinzenta que a cercava, havia cores e luzes, convidando a enxergar um mundo mais amplo.

         Foi então, sem nada mais a perder, que tomou coragem e decidiu se entregar, entregou-se a única pessoa que jamais se permitira conhecer; Entregou-se a si própria e, que grande surpresa, amou quem conheceu.

         Os olhares deixavam de pesar tanto ou serem tão relevantes, quanto mais olhava para si própria.

         Enxergou nos próprios olhos, antes tão fundos e opacos, o brilho da própria força. Acariciou os cabelos quebradiços e descobriu que lentamente podia lhes dar vida. Cavando bem fundo no próprio coração, reencontrou seu sorriso e se viu cega pela luz que dele emanava.

         Podia ainda estar em um ambiente hostil, mas agora percebia que também existiam sorrisos gentis e afagos se ela estivesse disposta a recebê-los. Já não precisava impor sua presença aos demais ou se fazer notar, pois percebia que era vista por quem realmente merecia sua consideração. Aquele reconhecimento valia mais do que todos os outros juntos.

         Pouco a pouco, como em uma difícil escalada, reencontrou pedaços de si mesma. Partes da própria alma, que deixara outros arrancarem na tentativa de se moldar no que não era.

         Remontando-se de um jeito novo, descobriu que se amava por inteiro, toda a luz de seu espírito e a escuridão onde escondera seus reais desejos, vontades e tudo aquilo que disseram que não prestava. Tudo prestava sim! Pois era ela, a verdadeira e por tanto tempo perdida.

         Finalmente, abraçou a si própria, percebendo a verdadeira beleza de ser quem era, maravilhada e sem entender como pudera dar as costas a um ser tão incrível.

         Foi então que, não mais que de repente, ocorreu a verdadeira mágica e sentiu o peso em suas costas finalmente se desprender, expandindo-se de forma majestosa.

         Gritou, em uma mistura de profunda dor e êxtase, quase sem entender, quando sentia sua pele rasgar e o peso, agora macio, se aninhar de maneira protetora em suas costas, onde antes havia apenas as restrições da dor e da culpa.

         Seu grito ecoou por todo o espaço e ela sentiu os olhares surpreendidos daqueles que jamais lhe deram valor. Sentiu o acariciar suave dos novos apêndices que cresceram em suas costas e teve a certeza definitiva de que podia voar.

         A revelação a atingiu de surpresa, percorrendo todo seu corpo como uma descarga elétrica: Finalmente era livre! Livre em si mesma, livre, conhecendo suas qualidades, livre, enxergando todas as possibilidades, livre, tomando, em fim, consciência de que seria capaz de superar qualquer obstáculo para conquistar seus sonhos.

         Gargalhou, sentindo-se preenchida de alegria, deixando o riso sair de sua boca em lufadas rodopiantes de ar ao seu redor, aquecendo todo o ambiente. Expandiu suas asas, jogando para longe tudo e todos que lhe eram prejudiciais e, finalmente, voou.

         Sentindo-se leve, ergueu-se a cima das construções, ergueu-se até as nuvens e lá do alto enxergou o maravilhoso mundo que se apresentava no horizonte, convidando-a a explorá-lo.

         Sentiu o sol do novo dia que nascia aquecer sua pele macia e suas penas recém-adquiridas, parecendo recarregar suas forças. Rodopiou no espaço, sentindo o sabor da brisa. Passeou entre as nuvens, sentindo a água lavar e curar todos os machucados. Inebriada por tantas novas sensações, se deliciou ao perceber que havia tanta magia e encanto em si mesma e que isso se refletia em tudo que a cercava.

         Ouvia ao longe os aplausos e gritos de aprovação daqueles que sempre torceram por ela, abafando todos os resmungos mesquinhos dos invejosos que, tantas vezes, tentaram podar suas asas.

         Nunca se sentira tão cheia de amor e consciente de que, quanto mais o distribuísse, mais ele aumentaria.

         Ousou voar mais alto, se aventurar, confiante da própria força, sabendo que havia superado tantos desafios para adquirir suas asas e que superaria quaisquer outros em seu caminho.

         Como no natural transcorrer dos ciclos, aos poucos se percebeu cercada de diversos seres como ela própria, com as mais belas e diversas asas, em um caleidoscópio de cores e amores.

Soube, enfim, que estava em casa, que nunca mais se sentiria sozinha. Entendeu que ao encontrar a si própria, pode encontrar quem realmente a amava e que tinha a força necessária para conquistar cada um de seus sonhos.

Fim.

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