Desistia. Olhando para a tela em branco de seu monitor, onde o pequeno cursor piscando no canto superior esquerdo parecia debochar dela. Desafiando “anda, escreva, vomite palavras!”, porém ela não conseguia.
Escrevia uma frase, talvez duas e então apagava tudo novamente. “Nunca apague”,
certa vez a aconselharam. Bem, talvez a pessoa que disse isso tivesse um
processo criativo mais fluido, mas o dela simplesmente estava empacado.
Era bem-feito, também quem mandara? De todos os assuntos que podia escrever
inventara de falar sobre o amor. Em pleno século XXI, quem escrevia sobre o
amor?!
Era uma escritora – pfff, escritora, aham... – de ficção. Afinal só assim
mesmo, certo? Apenas no mundo da fantasia cabia escrever sobre amores. O mundo
estava muito frio, as pessoas egoístas, quem tinha tempo para amar atualmente?
Se dedicar a outra pessoa? Mal temos tempo para nos dedicar a nós mesmos!
Então restava os reinos encantados da ficção, onde havia o perfume da floresta,
o sol era sempre morno, agradável e a noite enluarada, com céu apinhado de
estrelas. Esse, sim, era um lugar onde cabia amor.
Então que escrevesse sobre princesas e príncipes, ou talvez um ogro, para ser
moderna. Assim talvez funcionasse. Porém era tudo tão artificial, quem se
interessaria em ler um belo conto-de-fadas, com beijo de amor eterno e final
feliz? Novamente, em pleno século XXI? Por favor!
Escondeu o rosto entre as mãos, sentindo-se tomar pelo desespero. Estava em
cima do prazo, mais um pouco e falharia. Nenhuma ideia ia para frente, como
entregaria a história na hora certa?! Hora, que ela mesma estabelecera, claro,
mas havia o compromisso. Como ser levada a sério, se não honrava seus
compromissos?
Angustiada, ergueu os olhos para seu altar, onde cristais, penas e seres
fantásticos a olhavam de volta. Deuses, porque cismara em escrever sobre amor?
Haviam tantos outros temas, como... Quais? Branco total, absoluto. Apenas o
clamor insistente sobre a maldita palavra com A. Palavra obsoleta, isso sim.
Por favor, Clio, musa das histórias épicas, inspiradora dos escritores, me dê
alguma luz!
Nada.
Apolo, senhor de todas as artes, jogue sobre mim suas bênçãos!
Sério, com o Rio de Janeiro de baixo de chuva desse jeito? Tente novamente mais
tarde.
Não conseguia vislumbrar qualquer saída, tão envolta pelo nervosismo com o
prazo - Só mais uma hora, não vai dar pra revisar, socorro! -, mal ouvia a voz
que cantava ao seu inconsciente.
As batidas aceleradas de seu coração a impediam de ouvir qualquer outro som,
cada pulsar como um tic-tac do relógio, dizendo que o prazo estava perto de se
esgotar.
Foi quando a paciência de quem a chamava chegou ao fim. Virando sua cadeira com
força, lá estava ela a sua frente, os lábios torcidos em desagrado.
O ar fugiu de seus pulmões, fosse pelo susto ou pela fascinação. A mulher em
frente a ela era indescritível, tão bela que chegava a doer olhá-la
diretamente. Ela emanava o calor morno do sol dos contos de fada, aquele que te
convida a relaxar e se entregar, sem causar qualquer desconforto.
Sentiu um nó se formar na garganta, perdidamente apaixonada.
- Afrodite. – Murmurou baixinho e a expressão contrariada da divindade relaxou
em um sorriso cálido.
- Se vai escrever sobre mim, porque não me chama? – A pergunta não tinha um tom
recriminatório e a voz era doce e melodiosa.
Sentiu-se tomada pela vergonha, como pudera cometer tal gafe? Sequer havia o
que responder.
- E-eu... Me desculpe. – A escritora murmurou baixinho, desviando o olhar.
Mas a deusa não parecia abalada, apenas se divertindo com toda a situação.
- Você não acredita no amor, criança? – Perguntou simplesmente.
- Não sei em que acreditar, senhora. – Foi a resposta tímida da escritora. –
Como crer no amor com o mundo do jeito que esta? As relações parecem todas tão
vazias, superficiais, ninguém esta disposto a fazer qualquer esforço pelo
outro...
- Não deposite nos outros os seus medos, menina. – A deusa disse,
interrompendo-a. – O que impede o amor é o medo de sofrer. Porém isso não tem
nada haver com amar, mas sim em como vocês parecem ter deixado de aceitar que
tudo acaba.
Olhou-a confusa. O que Afrodite queria dizer?
- Criança, eu desprezo o primeiro infeliz que falou em amores intermináveis e
criou o mito do felizes para sempre. – A escritora sentiu um nó se formar em
sua garganta, sem acreditar no que ouvia da divindade. Não era Afrodite a deusa
do Amor, afinal? – Há diversas formas de amar e nenhuma delas é errada. O amor
nunca causa dor, o amor cura.
Sentiu vontade de discordar, mas mordeu a própria língua por medo de ser
insolente. Talvez fosse assim para a senhora da beleza, para ela devia ser
fácil. Porém para uma humana qualquer, com seu histórico de rejeições e
términos sofridos, o amor certamente soava bem dolorido.
Ainda que não tivesse expressado nenhum desses pensamentos, Afrodite sabia de
cada um deles e balançou a cabeça em negativa.
- O amor não dói, eu repito. Escute minhas palavras: Amar nos liberta e enche
de força, quando amamos somos capazes de ver com mais clareza as maravilhas do
universo. O amor nos enche com sua luz morna e nos faz belos. – Abriu um largo
sorriso.- Isso, criança, é o amor.
- Até que ele acaba. – Murmurou baixinho, incapaz de se conter mais.
Sentiu-se corar e abriu a boca pare pedir desculpas, mas a Deusa riu, os olhos
brilhando de forma travessa.
- Tudo acaba, criança, e não deveria valer menos por isso. Não é por não ser
eterno, que não é amor. Quando você ama a si próprio e compartilha esse amor
com o mundo, algumas vezes pode não recebe-lo de volta, porém não faz mal,
porque há sempre mais de onde ele veio. Agora, quando o amor é reciproco, vale
a pena aproveitá-lo ao máximo, mesmo sabendo que se um dia pode acabar. É um
ciclo que se fecha e por mais que doa, logo outro se abrirá e novos amores
surgirão.
- Mas ninguém parece disposto a amar atualmente. – Questionou.
- Pelo contrário, finalmente os humanos estão se libertando de amarras e se
permitindo amar livremente. Repito, menina, não há jeito certo de amar,
enquanto respeita a si mesma e ao outro, há amor.
- Ninguém mais quer saber de compromisso, minha Deusa, ninguém mais se
sacrifica pelo outro.
- Seu maior compromisso é com a felicidade, menina, ame a si mesma em primeiro
lugar. Nunca pare de buscar o que lhe deixa feliz e quando encontrar, não ligue
para o julgamento alheio, lute pelo seu direito de ser feliz! O que se faz por
amor é doação, jamais sacrifício. Se dói, não é amor.
- Aprendemos que “Amor é um contentamento descontente”, “dor que dói e não se
sente” e coisas assim... – Tentou contra argumentar, mas a divindade
pacientemente apenas balançou a cabeça em negativa, fazendo-a se calar.
- Ah, os românticos e suas dores, em uma época em que mulheres foram forçadas
em uma forma de pureza virginal e que os prazeres eram vistos como errados, tão
mal fizeram ao mundo. – Acariciando o rosto da escritora, a deusa concluiu. – Pois
eu lhe prometo, menina, deixe-se amar sem culpa, sem pressa e sem ansiedade,
ame simplesmente e seja feliz enquanto durar o amor, mas não lamente seu fim,
agradeça o que recebeu e vá em frente.
- Mas isso soa tão frívolo. – Disse a escritora, com a voz embargada.
- Finais e começos tem em comum serem dolorosos, não renegue a dor, pois ela
faz parte de qualquer aprendizado. Apenas não deixe que ela te paralise,
impedindo de apreciar o caminho, apenas por saber que em algum momento terá
fim.
A escritora sentiu as lágrimas quentes escorrerem por suas bochechas,
emocionada. Sabendo que finalmente havia se feito compreender, a imagem de
Afrodite se desvaneceu lentamente, deixando para escritora o coração aquecido,
a história que escreveria aquele dia e o suave perfume de manjericão.
Fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário