quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Hermes.

         Em outro mundo, talvez fosse um ladrão.

         Não do tipo mesquinho, que rouba ninharias de viajantes cansados em estradas desertas, recorrendo a muita violência. Não, seria lendário. Talvez com um toque de Robin Hood, porém menos altruísta.

         Um artista, capaz de adentrar qualquer local sem ser visto e de abrir qualquer tipo de fechadura, tranca ou cofre.

         Gostava de se imaginar carregando armas leves e certeiras, apenas para autodefesa, talvez pequenas adagas ou agulhas, algo de classe e precisão.

         Não, necessariamente, seria um mundo medieval. Gostava do estilo da Mulher-Gato, por que não? Elegante, capaz de transitar em meio à elite, sedutor. Definitivamente sedutor.

         Usaria sua lábia para conquistar suas vítimas, elas próprias o convidariam a sua casa, então bastaria um pouco de astúcia, uma pequena dose de sonífero ou horas de sexo selvagem e poderia fazer a limpa no local.

         Como disse, não seria um ladrãozinho qualquer. Roubaria dos mais abastados, desafiaria sua ordem excludente e seu status quo de intocáveis. Eles o odiariam, enquanto o povo quase o veria como um herói, sentindo-se vingados em seus atos. Estilo Robin Hood, lembra? Talvez não desse todo o seu ganho para os menos favorecidos, mas certamente ajudaria uma boa causa ou duas.

         Quem sabe um orfanato? Gostava de crianças, de sua criatividade e olhares cheios de esperança. Ou um asilo? Pois admirava a sabedoria dos mais velhos.

         Em outro mundo, dobrar as regras a seu favor seria bem mais emocionante, cheio de adrenalina e desafios épicos.

         Um dia poderia estar seduzindo uma nobre ingênua e entediada, guiando-a pelas aventuras da vida em meio à plebe. Aproveitaria para divertir-se com a donzela nem tão pura, enquanto, internamente, desprezaria a forma romantizada com que ela enxergava a vida dos miseráveis.

         Em outro momento, estaria em uma boate de luxo, a qual se valeu do contato do amigo de um amigo, para penetrar pela entrada de serviço. Lá seduziria um daqueles playboys que vendiam a imagem de machões juntos as suas tracionais famílias de cidadãos de bem.

Enquanto se pegavam no banheiro, roubaria as chaves do carro importado que a vovó lhe dera de presente. Apenas pela diversão de largar o veículo em um bairro periférico, esquecido pelo governo. Um carro desses dá muito na vista, não vale a pena furtá-lo para efetivamente vender.

Alguns o chamariam de agente do caos, mas em verdade ele trabalharia pelo equilíbrio.

De forma poética, poderia usar sua lábia para vender a imagem de justiceiro social. Porém, se fosse honesto, reconheceria que fazia apenas para alimentar o próprio ego. Não que isso importasse, já que, de certa forma, estaria fazendo um “bem”. Desde que esteja fazendo o bem, seus motivos não importam... Certo?

O relógio corria tão devagar, enquanto aguardava a hora marcada. Olhou para o papel de parede no fundo de seu monitor e a imagem do Deus alado o olhou de volta. Ria de modo travesso e parecia se divertir com os pensamentos do homem.

Ajeitou a pequena balança que decorava sua mesa, alinhando os pratos e suspirou.

Em outro universo, talvez pudesse ser um bardo. Cantando lendas de vilarejo em vilarejo, sem que ninguém soubesse se eram verdadeiras ou não.

Traria cor para a vida dos mais humildes, enfeitando atos do dia a dia com lirismo, deixando suas vidas mais emocionantes, mesmo com acontecimentos banais.

Seria aplaudido em plena corte, ao debochar de seus membros e talvez optasse por seduzir a rainha, ou mesmo o rei, em uma noite particular.

Talvez fosse os dois, ladrão e bardo, roubaria riquezas e mas distribuiria sonhos. Contaria histórias de suas próprias façanhas, sem admitir que as realizara e então às reviveria, aperfeiçoando cada falha que cometera, para tornar-se um personagem épico.

Ajeitou-se na cadeira. Os últimos minutos eram os piores, enquanto se preparava para lidar com os argumentos cheios de raiva da outra parte e a arrogância injustificada de um juiz com pretensões divinas. Era tudo um grande teatro, um jogo que argumentação em que ele era especialista.

A secretaria bateu em sua porta e ele se levantou, sentindo o pulso acelerar. Hora de ir ao combate, usando palavras como armas. Seu objetivo era derrubar o adversário, sem chances de levantar.

Em sua boca os sabores do café e da pasta de dentes de hortelã ainda se misturavam. Apertou a gravata e vestiu o paletó, como quem veste uma armadura.

Havia suficiente emoção em sua vida, pensou, enquanto revisava os argumentos da defesa de seu cliente.

Se reclinou contra a cadeira, dando um meio sorriso. O cantar dos passarinhos anunciava o sol nascendo.

Esfregou os olhos cansados pelas horas passadas olhando o monitor. Soltou os cabelos bagunçados e os prendeu novamente em um coque.

Em outro mundo seria um ladrão, um bardo ou um advogado. Tornando o tribunal seu palco e utilizando as palavras para dobrar as leis aos seus interesses e de seus clientes. Tentando equilibrar as injustiças do mundo, ao demonstrar que a lei realmente poderia servir a todos, independente de condição social.

Em outro mundo, assumiria outras das faces do Deus chamado sonso e ladrão. Porém estava feliz utilizando palavras para enfeitar realidades, assim criando novos mundos.

Não sabia o que iria querer ser amanhã, mas agora era hora de voltar a própria realidade.


Beijou a pequena asa em seu colar, agradecendo a inspiração com as palavras e foi para cama.

Fim.

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