Em outro mundo, talvez fosse um ladrão.
Não do tipo mesquinho, que rouba
ninharias de viajantes cansados em estradas desertas, recorrendo a muita
violência. Não, seria lendário. Talvez com um toque de Robin Hood, porém menos
altruísta.
Um artista, capaz de adentrar qualquer
local sem ser visto e de abrir qualquer tipo de fechadura, tranca ou cofre.
Gostava de se imaginar carregando armas
leves e certeiras, apenas para autodefesa, talvez pequenas adagas ou agulhas,
algo de classe e precisão.
Não, necessariamente, seria um mundo
medieval. Gostava do estilo da Mulher-Gato, por que não? Elegante, capaz de
transitar em meio à elite, sedutor. Definitivamente sedutor.
Usaria sua lábia para conquistar suas
vítimas, elas próprias o convidariam a sua casa, então bastaria um pouco de
astúcia, uma pequena dose de sonífero ou horas de sexo selvagem e poderia fazer
a limpa no local.
Como disse, não seria um ladrãozinho
qualquer. Roubaria dos mais abastados, desafiaria sua ordem excludente e seu status quo de intocáveis. Eles o
odiariam, enquanto o povo quase o veria como um herói, sentindo-se vingados em
seus atos. Estilo Robin Hood, lembra? Talvez não desse todo o seu ganho para os
menos favorecidos, mas certamente ajudaria uma boa causa ou duas.
Quem sabe um orfanato? Gostava de
crianças, de sua criatividade e olhares cheios de esperança. Ou um asilo? Pois
admirava a sabedoria dos mais velhos.
Em outro mundo, dobrar as regras a seu
favor seria bem mais emocionante, cheio de adrenalina e desafios épicos.
Um dia poderia estar seduzindo uma
nobre ingênua e entediada, guiando-a pelas aventuras da vida em meio à plebe. Aproveitaria
para divertir-se com a donzela nem tão pura, enquanto, internamente,
desprezaria a forma romantizada com que ela enxergava a vida dos miseráveis.
Em outro momento, estaria em uma boate
de luxo, a qual se valeu do contato do amigo de um amigo, para penetrar pela
entrada de serviço. Lá seduziria um daqueles playboys que vendiam a imagem de
machões juntos as suas tracionais famílias de cidadãos de bem.
Enquanto se pegavam no banheiro,
roubaria as chaves do carro importado que a vovó lhe dera de presente. Apenas
pela diversão de largar o veículo em um bairro periférico, esquecido pelo
governo. Um carro desses dá muito na vista, não vale a pena furtá-lo para
efetivamente vender.
Alguns o chamariam de agente do
caos, mas em verdade ele trabalharia pelo equilíbrio.
De forma poética, poderia usar sua
lábia para vender a imagem de justiceiro social. Porém, se fosse honesto,
reconheceria que fazia apenas para alimentar o próprio ego. Não que isso
importasse, já que, de certa forma, estaria fazendo um “bem”. Desde que esteja
fazendo o bem, seus motivos não importam... Certo?
O relógio corria tão devagar,
enquanto aguardava a hora marcada. Olhou para o papel de parede no fundo de seu
monitor e a imagem do Deus alado o olhou de volta. Ria de modo travesso e
parecia se divertir com os pensamentos do homem.
Ajeitou a pequena balança que
decorava sua mesa, alinhando os pratos e suspirou.
Em outro universo, talvez pudesse
ser um bardo. Cantando lendas de vilarejo em vilarejo, sem que ninguém soubesse
se eram verdadeiras ou não.
Traria cor para a vida dos mais
humildes, enfeitando atos do dia a dia com lirismo, deixando suas vidas mais
emocionantes, mesmo com acontecimentos banais.
Seria aplaudido em plena corte, ao
debochar de seus membros e talvez optasse por seduzir a rainha, ou mesmo o rei,
em uma noite particular.
Talvez fosse os dois, ladrão e
bardo, roubaria riquezas e mas distribuiria sonhos. Contaria histórias de suas
próprias façanhas, sem admitir que as realizara e então às reviveria,
aperfeiçoando cada falha que cometera, para tornar-se um personagem épico.
Ajeitou-se na cadeira. Os últimos
minutos eram os piores, enquanto se preparava para lidar com os argumentos
cheios de raiva da outra parte e a arrogância injustificada de um juiz com
pretensões divinas. Era tudo um grande teatro, um jogo que argumentação em que
ele era especialista.
A secretaria bateu em sua porta e
ele se levantou, sentindo o pulso acelerar. Hora de ir ao combate, usando
palavras como armas. Seu objetivo era derrubar o adversário, sem chances de
levantar.
Em sua boca os sabores do café e da
pasta de dentes de hortelã ainda se misturavam. Apertou a gravata e vestiu o
paletó, como quem veste uma armadura.
Havia suficiente emoção em sua vida,
pensou, enquanto revisava os argumentos da defesa de seu cliente.
Se
reclinou contra a cadeira, dando um meio sorriso. O cantar dos passarinhos
anunciava o sol nascendo.
Esfregou
os olhos cansados pelas horas passadas olhando o monitor. Soltou os cabelos
bagunçados e os prendeu novamente em um coque.
Em
outro mundo seria um ladrão, um bardo ou um advogado. Tornando o tribunal seu
palco e utilizando as palavras para dobrar as leis aos seus interesses e de
seus clientes. Tentando equilibrar as injustiças do mundo, ao demonstrar que a
lei realmente poderia servir a todos, independente de condição social.
Em
outro mundo, assumiria outras das faces do Deus chamado sonso e ladrão. Porém
estava feliz utilizando palavras para enfeitar realidades, assim criando novos
mundos.
Não
sabia o que iria querer ser amanhã, mas agora era hora de voltar a própria
realidade.
Beijou
a pequena asa em seu colar, agradecendo a inspiração com as palavras e foi para
cama.
Fim.
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