quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A Rainha Esta Morta.

         Sentia-se tão cansada e sabia que não resistiria por mais muito tempo, o peso das correntes retardava seus movimentos.

         Mais uma vez, as lâminas se chocaram e ela encontrou forças para empurrar sua adversária.

         Assistiu a outra cair no chão da arena e se encolher, sem forças para levantar. A imagem embaçada pelo sangue que escorria de um corte em sua sobrancelha esquerda.

         A multidão ao redor gritava, sedenta por sangue. Eles riam, aplaudiam e vibravam, vendo as duas garotas lutarem. Ambas usando grossas correntes que a impediriam de ir além dos limites da arena, que decorada com tochas e bandeirolas, dava clima de festejo ao terrível espetáculo.

         Sentia-se totalmente anestesiada, a muito havia sumido a dor física, seu corpo estava a beira de um colapso e ela queria resistir, mas tinha conhecimento de que se não fosse em frente, morreria.

         Ao seu redor, a corte sumia em roupas coloridas e caras, os rostos da nobreza contorcidos em terríveis mascaras risonhas.

         Ergueu os olhos para o palanque onde o grande soberano assistia o espetáculo e viu quando, sem transparecer qualquer sentimento, ele sinalizou que devia eliminar a adversária.

         Arrastando-se, ela foi até a que se contorcia no chão. Os gritos das arquibancadas eram quase o suficiente para abafar as súplicas por piedade e ela gostaria de poder fingir que não os ouvia, pois assim talvez doesse menos.

         Desejava que pudesse ser rápido e limpo, mas os desgraçados queriam um show que alimentasse sua sede por violência.

         Agarrando-se unicamente ao desejo de sobreviver mais um dia, ergueu a adaga em sua mão esquerda e cravou na lateral da cintura da guerreira, que urrou, o som parecendo preencher cada canto vazio do ressinto. Em seguida abriu um corte profundo da clavícula até o umbigo com a adaga da mão direita. Agora a outra não mais gritava, apenas chorava e balbuciava pedidos de clemência.

         Sentia o calor do sangue que a banhava, mas mal conseguia registrar as sensações corretamente.

         A grotesca plateia soltava guinchos de aprovação, quando por fim cravou uma adaga na garganta da outra, dando fim ao tormento.

         Sentia-se tão vazia, traída, abandonada e sem valor. Ali, ajoelhada em meio a seus algozes, vendo-os se divertir com sua dor. Seu coração apertava e a garganta tinha um nó dolorido, porém a muito perdera a capacidade de chorar.

         O rei levantou-se de seu trono, provocando silêncio. Bateu três palmas secas, que ecoaram no ambiente fechado e abriu um sorriso sem vida, que pareceu rasgar a pele, ressecada e amarelada como um papiro, de seu rosto, antes de falar:

         - Venha até aqui, meu bichinho. – Sua voz pastosa como se mastigasse uma maçã podre.

         Ela se arrastou, mal aguentando se colocar de pé, e se prostrou de joelhos em frente a ele, que ergueu sua mão de dedos muito magros e unhas sujas para acariciar o topo de sua cabeça, como faria a um cão leal.

         - Ela não teve uma performance fantástica essa noite? – Perguntou ao público, sentando-se novamente no trono e batendo nas coxas ossudas, sinalizando que ela deveria apoiar a cabeça em seu colo.

         Ouviu os aplausos e comentários debochados da corte, enquanto fazia o que fora mandada. Ignorando a dor dos cortes e hematomas que cobriam seu corpo. Outrora se sentiria humilhada, mas já não lhe restara orgulho para tanto.

         O rei continuou seu discurso, usando palavras compridas para elogiá-la em um tom de deboche, que deixava claro o seu cruel divertimento. Enquanto a corte ria e emitira ruídos de concordância, entre o tilintar de taças e o mastigar da cara comida servida.

         Ela tinha tanta fome, não lembrava de ter comido desde o dia anterior, também sentia sede. Porém nenhuma dor física poderia superar a dor da vergonha que sentia, vergonha de como se deixara manipular e chegara até ali.

         Lembrava-se com tanta clareza de sua infância, quando foi feliz com sua família. Podiam não ser ricos, mas tinham o suficiente para viver com conforto.

         Seu pai trabalhava na corte, cobrando impostos e auxiliando os fiscais. Sua mãe cuidava da pequena loja de calçados que abrira no primeiro andar da própria casa e eles eram felizes.

         Se ao menos ela soubesse.

         Durante anos ouvira seus pais reclamarem das insanidades da rainha, de como sentiam-se ultrajados pelos abusos dela, que sem dó usurpavam-lhe dinheiro e distribuía aos vagabundos do reino.

         Cresceu ouvindo sobre como seus pais, trabalhadores honrados, não conseguiam melhorar de vida por culpa das pesadas taxas que a rainha cobrava e de como ela distribuída este dinheiro para os marginais, sustentando vagabundos, prostitutas, drogados, ébrios e criminosos. Ela cresceu odiando a rainha.

         Foi quando ele surgiu, em sua postura altiva, as vestes negras e o capacete dourado.

         Ele falava tão bem, enquanto a rainha sempre se mostrara tão avessa a pronunciamentos.

         Ele andou entre os poderosos do reino, infiltrou-se na corte, adquirindo cada vez mais status e confiança. Seus discursos sobre a crescente loucura da rainha fomentaram o ódio do povo que se via injustiçado.

         Até que, finalmente, tamanha foi a revolta das massas, que elas se rebelaram, convencidas de que a rainha iria levar o reino a ruína.

         Ela se uniu as frentes, armando-se com uma espada de segunda mão, que seu pai conseguira comprar, e marchou até o castelo, em brados de guerra, tomada pelo frenesi da multidão enfurecida.

         Embora muitos tenham caído, conseguiram quebrar as defesas e tomar o local. Ela, pequena e ágil, teve sucesso em se esgueirar pelas passagens estreitas e foi a primeira a chegar aos aposentos da rainha.

         Lembrava-se com clareza da imagem da rainha, sua beleza havia sido consumida pelos anos e batalhas, mas ela permanecia altiva. Seu vestido de corte impecável não era dos tecidos mais caros e não ostentava muitas joias ou coroa.

         - O que você faz aqui, criança? – Ela perguntara, com os olhos brilhando em dor profunda, como se sofresse ao vê-la.

         Porém se convenceu de que não passava de um truque sórdido da rainha louca e não hesitou em arrancar-lhe a cabeça, tirando forças da fúria cega pela qual se permitira possuir.

         Nos poucos instantes em que permaneceu sozinha no aposento, olhou bem para os olhos vazios no rosto morto da rainha e teve a clara impressão de que ela chorava.

         Sentiu um peso sufocante em seu peito, mas não teve tempo para compreendê-lo. Pois logo era erguida e clamada como heroína, vendo-se novamente tomada pelo clamor da multidão e se pondo a chorar, sem saber se era de tristeza ou alegria, em meio aos aplausos.

         Naquela época os gritos de aprovação e os aplausos a fizeram sentir tão bem, relegando ao fundo da mente qualquer culpa que tentasse a consumir, enquanto aceitava o manto de salvadora do reino. Hoje percebia que os aplausos tinham tom de deboche desde aquela época.

         Em um primeiro momento houve vastos festivais, a cabeça da rainha morta foi colocada na sala do trono, como um troféu de caça, e o povo acreditou que sua luta o tinha libertado de uma tirana, colocando um rei merecedor no local.

         Porém a alegria não durou muito, sua mãe que comemorara a redução dos valores que era obrigada a pagar a seus empregados, de repente se viu incapaz de arcar com os custos de manutenção de sua pequena loja e seu pai perdeu o emprego em seguida.

         Aos poucos, o calor e o brilho de sua fama arrefeceram e ela se viu relegada ao esquecimento.

         Logo a fome se alastrou pelos grandes centros do reino, com os empregos diminuindo e as pessoas em desespero, logo a violência se alastrou como jamais antes, por toda a parte.

         Ela, que antes se dispunha a lutar e reprimir as hordas dos miseráveis aproveitadores, como chama aqueles lamentavam a morte da rainha. Agora se via desesperada, clamando por piedade do povo, por piedade dela própria.

         Passava fome, enquanto a corte e o rei se deliciavam com banquetes suntuosos e tomavam cada vez mais, sem demonstrarem qualquer interesse no sofrimento dos menos afortunados.

         Lentamente, ela se viu sujeitando-se ao inimaginável para sobreviver. Ela que antes fora aplaudida como uma grande guerreira, agora se exibia em shows sinistros para a diversão da corte, assassinando qualquer um que colocassem a sua frente, pela promessa de um prato de comida com, talvez, um pedaço de carne, após cada espetáculo.

         Ela queria chorar, enquanto sentia a mão cadavérica do maligno usurpador correr pelos fios sujos de seus cabelos, mas já não tinha lágrimas. Os grilhões em seus pulsos e tornozelos, a coleira que dificultava sua respiração, eram apenas a materialização dos fios que se recusara a enxergar anteriormente.

         Deixara-se manipular, movida pela própria ignorância e egoísmo, sempre fora uma marionete nas mãos dos interesses escusos daquela elite sedenta de sangue.

         Ergueu os olhos e encarou a cabeça da rainha assassinada e mais uma vez enxergou as lágrimas correndo abundantes dos olhos vítreos. Pena que só percebera a verdade, quando já era tarde demais.


Fim.

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