Sentia-se tão cansada e sabia que não
resistiria por mais muito tempo, o peso das correntes retardava seus
movimentos.
Mais uma vez, as lâminas se chocaram e
ela encontrou forças para empurrar sua adversária.
Assistiu a outra cair no chão da arena
e se encolher, sem forças para levantar. A imagem embaçada pelo sangue que
escorria de um corte em sua sobrancelha esquerda.
A multidão ao redor gritava, sedenta
por sangue. Eles riam, aplaudiam e vibravam, vendo as duas garotas lutarem.
Ambas usando grossas correntes que a impediriam de ir além dos limites da arena,
que decorada com tochas e bandeirolas, dava clima de festejo ao terrível
espetáculo.
Sentia-se totalmente anestesiada, a
muito havia sumido a dor física, seu corpo estava a beira de um colapso e ela
queria resistir, mas tinha conhecimento de que se não fosse em frente,
morreria.
Ao seu redor, a corte sumia em roupas
coloridas e caras, os rostos da nobreza contorcidos em terríveis mascaras
risonhas.
Ergueu os olhos para o palanque onde o
grande soberano assistia o espetáculo e viu quando, sem transparecer qualquer
sentimento, ele sinalizou que devia eliminar a adversária.
Arrastando-se, ela foi até a que se
contorcia no chão. Os gritos das arquibancadas eram quase o suficiente para
abafar as súplicas por piedade e ela gostaria de poder fingir que não os ouvia,
pois assim talvez doesse menos.
Desejava que pudesse ser rápido e
limpo, mas os desgraçados queriam um show que alimentasse sua sede por
violência.
Agarrando-se unicamente ao desejo de
sobreviver mais um dia, ergueu a adaga em sua mão esquerda e cravou na lateral
da cintura da guerreira, que urrou, o som parecendo preencher cada canto vazio
do ressinto. Em seguida abriu um corte profundo da clavícula até o umbigo com a
adaga da mão direita. Agora a outra não mais gritava, apenas chorava e
balbuciava pedidos de clemência.
Sentia o calor do sangue que a banhava,
mas mal conseguia registrar as sensações corretamente.
A grotesca plateia soltava guinchos de
aprovação, quando por fim cravou uma adaga na garganta da outra, dando fim ao
tormento.
Sentia-se tão vazia, traída, abandonada
e sem valor. Ali, ajoelhada em meio a seus algozes, vendo-os se divertir com
sua dor. Seu coração apertava e a garganta tinha um nó dolorido, porém a muito
perdera a capacidade de chorar.
O rei levantou-se de seu trono,
provocando silêncio. Bateu três palmas secas, que ecoaram no ambiente fechado e
abriu um sorriso sem vida, que pareceu rasgar a pele, ressecada e amarelada
como um papiro, de seu rosto, antes de falar:
- Venha até aqui, meu bichinho. – Sua
voz pastosa como se mastigasse uma maçã podre.
Ela se arrastou, mal aguentando se
colocar de pé, e se prostrou de joelhos em frente a ele, que ergueu sua mão de
dedos muito magros e unhas sujas para acariciar o topo de sua cabeça, como
faria a um cão leal.
- Ela não teve uma performance
fantástica essa noite? – Perguntou ao público, sentando-se novamente no trono e
batendo nas coxas ossudas, sinalizando que ela deveria apoiar a cabeça em seu
colo.
Ouviu os aplausos e comentários
debochados da corte, enquanto fazia o que fora mandada. Ignorando a dor dos
cortes e hematomas que cobriam seu corpo. Outrora se sentiria humilhada, mas já
não lhe restara orgulho para tanto.
O rei continuou seu discurso, usando
palavras compridas para elogiá-la em um tom de deboche, que deixava claro o seu
cruel divertimento. Enquanto a corte ria e emitira ruídos de concordância,
entre o tilintar de taças e o mastigar da cara comida servida.
Ela tinha tanta fome, não lembrava de
ter comido desde o dia anterior, também sentia sede. Porém nenhuma dor física
poderia superar a dor da vergonha que sentia, vergonha de como se deixara
manipular e chegara até ali.
Lembrava-se com tanta clareza de sua
infância, quando foi feliz com sua família. Podiam não ser ricos, mas tinham o
suficiente para viver com conforto.
Seu pai trabalhava na corte, cobrando
impostos e auxiliando os fiscais. Sua mãe cuidava da pequena loja de calçados
que abrira no primeiro andar da própria casa e eles eram felizes.
Se ao menos ela soubesse.
Durante anos ouvira seus pais
reclamarem das insanidades da rainha, de como sentiam-se ultrajados pelos
abusos dela, que sem dó usurpavam-lhe dinheiro e distribuía aos vagabundos do
reino.
Cresceu ouvindo sobre como seus pais,
trabalhadores honrados, não conseguiam melhorar de vida por culpa das pesadas
taxas que a rainha cobrava e de como ela distribuída este dinheiro para os marginais,
sustentando vagabundos, prostitutas, drogados, ébrios e criminosos. Ela cresceu
odiando a rainha.
Foi quando ele surgiu, em sua postura
altiva, as vestes negras e o capacete dourado.
Ele falava tão bem, enquanto a rainha
sempre se mostrara tão avessa a pronunciamentos.
Ele andou entre os poderosos do reino,
infiltrou-se na corte, adquirindo cada vez mais status e confiança. Seus
discursos sobre a crescente loucura da rainha fomentaram o ódio do povo que se
via injustiçado.
Até que, finalmente, tamanha foi a
revolta das massas, que elas se rebelaram, convencidas de que a rainha iria
levar o reino a ruína.
Ela se uniu as frentes, armando-se com
uma espada de segunda mão, que seu pai conseguira comprar, e marchou até o
castelo, em brados de guerra, tomada pelo frenesi da multidão enfurecida.
Embora muitos tenham caído, conseguiram
quebrar as defesas e tomar o local. Ela, pequena e ágil, teve sucesso em se
esgueirar pelas passagens estreitas e foi a primeira a chegar aos aposentos da
rainha.
Lembrava-se com clareza da imagem da
rainha, sua beleza havia sido consumida pelos anos e batalhas, mas ela
permanecia altiva. Seu vestido de corte impecável não era dos tecidos mais
caros e não ostentava muitas joias ou coroa.
- O que você faz aqui, criança? – Ela
perguntara, com os olhos brilhando em dor profunda, como se sofresse ao vê-la.
Porém se convenceu de que não passava
de um truque sórdido da rainha louca e não hesitou em arrancar-lhe a cabeça,
tirando forças da fúria cega pela qual se permitira possuir.
Nos poucos instantes em que permaneceu
sozinha no aposento, olhou bem para os olhos vazios no rosto morto da rainha e
teve a clara impressão de que ela chorava.
Sentiu um peso sufocante em seu peito,
mas não teve tempo para compreendê-lo. Pois logo era erguida e clamada como
heroína, vendo-se novamente tomada pelo clamor da multidão e se pondo a chorar,
sem saber se era de tristeza ou alegria, em meio aos aplausos.
Naquela época os gritos de aprovação e
os aplausos a fizeram sentir tão bem, relegando ao fundo da mente qualquer
culpa que tentasse a consumir, enquanto aceitava o manto de salvadora do reino.
Hoje percebia que os aplausos tinham tom de deboche desde aquela época.
Em um primeiro momento houve vastos
festivais, a cabeça da rainha morta foi colocada na sala do trono, como um
troféu de caça, e o povo acreditou que sua luta o tinha libertado de uma
tirana, colocando um rei merecedor no local.
Porém a alegria não durou muito, sua
mãe que comemorara a redução dos valores que era obrigada a pagar a seus
empregados, de repente se viu incapaz de arcar com os custos de manutenção de
sua pequena loja e seu pai perdeu o emprego em seguida.
Aos poucos, o calor e o brilho de sua
fama arrefeceram e ela se viu relegada ao esquecimento.
Logo a fome se alastrou pelos grandes
centros do reino, com os empregos diminuindo e as pessoas em desespero, logo a
violência se alastrou como jamais antes, por toda a parte.
Ela, que antes se dispunha a lutar e
reprimir as hordas dos miseráveis aproveitadores, como chama aqueles lamentavam
a morte da rainha. Agora se via desesperada, clamando por piedade do povo, por
piedade dela própria.
Passava fome, enquanto a corte e o rei
se deliciavam com banquetes suntuosos e tomavam cada vez mais, sem demonstrarem
qualquer interesse no sofrimento dos menos afortunados.
Lentamente, ela se viu sujeitando-se ao
inimaginável para sobreviver. Ela que antes fora aplaudida como uma grande
guerreira, agora se exibia em shows sinistros para a diversão da corte,
assassinando qualquer um que colocassem a sua frente, pela promessa de um prato
de comida com, talvez, um pedaço de carne, após cada espetáculo.
Ela queria chorar, enquanto sentia a
mão cadavérica do maligno usurpador correr pelos fios sujos de seus cabelos,
mas já não tinha lágrimas. Os grilhões em seus pulsos e tornozelos, a coleira
que dificultava sua respiração, eram apenas a materialização dos fios que se
recusara a enxergar anteriormente.
Deixara-se manipular, movida pela
própria ignorância e egoísmo, sempre fora uma marionete nas mãos dos interesses
escusos daquela elite sedenta de sangue.
Ergueu os olhos e encarou a cabeça da
rainha assassinada e mais uma vez enxergou as lágrimas correndo abundantes dos
olhos vítreos. Pena que só percebera a verdade, quando já era tarde demais.
Fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário