quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Fios Partidos.

Depois de uma longa jornada, buscando manter ocultas dos guardas daquele reino suas intenções, finalmente parecia ter obtido sucesso, acreditava ter invadido o palácio sem ser notado e estava prestes a atingir seu objetivo. Arfava de cansaço e excitação com a proximidade do fim de sua jornada, sentia seu corpo coberto de suor e o braço doendo, não acostumado com o peso da espada que carregava. Em outro momento tais sensações o fascinariam, não esperava poder sentir cansaço naquele mundo e se perguntava se todas essas sensações não seriam apenas fruto da sua mente. Porém nada disso importava, não agora, quando se via tão próximo de concluir sua vingança.

Prosseguiu sua busca, adentrando mais profundamente o rico salão, que refletia a fartura e prosperidade que emanavam de seu dono. Embora aquele mundo não possuísse qualquer vestígio da luz do sol e o palácio fosse todo decorado em tons escuros, não era difícil enxergar ali dentro, devido à luz das chamas, que refletia nas pedras e metais preciosos que integravam o ambiente e geravam uma miríade de luzes e brilhos ofuscantes.

Talvez qualquer pequena pedra que calçava o chão fosse o suficiente para garantir o sustento de uma família por um mês, mas o tesouro que buscava era muito maior que isso, pois sabia que com ele poderia se aproximar do dono daquele lugar sem ser notado. Enquanto seguia em sua busca, adentrando cada vez mais no palácio, lembrou-se do ancião que encontrara em seu caminho e da conversa que haviam tido:

- Aonde vai, jovem musico? – Ele lhe perguntou calmamente, sentado aos pés de uma árvore a beira da estrada.

O ancião possuía uma aparência frágil, mas negros olhos brilhantes e astutos, que pareciam capazes de ler o que as almas carregavam no mais profundo de seu coração. Incomodado com aquele olhar, o jovem respondeu grosseiramente:

- Meta-se com teus assuntos, velho, não lhe devo qualquer satisfação!

Preparou-se para prosseguir. Mas antes que desse mais um passo, o ancião tornou a falar:

- Tal arma pesada não combina contigo, meu caro lirísta. – E sorrindo gentilmente, completou. – Estas mãos nasceram para encantar os seres de todos os reinos, colhendo da lira as mais belas notas, e não para gerar o brutal corte do bronze.

- Não me venha com filosofias, velhote! Minha musica não me serviu no momento que mais precisei. Hoje usarei o bronze para obter a minha vingança contra o maldito que me trapaceou! – Bradou, tomado pela fúria, ainda mais determinado a partir dali o quanto antes.

Porém, ainda que de costas e a distância, não deixou de ouvir as ultimas palavras do ancião.

- Pobre e tola criança, ainda não aceitou que foi a sua própria arrogância que o iludiu.

Virou-se furioso para respondê-lo, mas viu que ele já se encontrava longe na estrada, andando tranquilamente apoiando em seu cajado, seguindo na direção oposta a sua.

Sacudiu a cabeça, anuviando as lembranças e voltando a se focar em sua busca, convencido de que não deveria dar atenção as palavras de um velhote desconhecido. Cada vez mais se aproximava dos aposentos do Senhor daquele lugar e acreditava estar mais perto de seu alvo, do objeto que lhe tornaria invisível e indetectável. Estava prestes a abrir a porta que suspeitava levar aos aposentos que buscava, quando ouviu a voz grave e fria do soberano daquele mundo.

- Por que invadiu minha casa com uma espada desembaiada, jovem criança? A caso acredita ser capaz de matar um Deus?

O invasor virou-se rapidamente, ficando com as costas coladas a porta, buscando a origem daquela voz que pareceu vir de todo o lugar e assistiu materializar-se a sua frente o Senhor daquele reino, que tornara-se visível ao retirar o elmo negro e ricamente trabalhado, que o jovem tanto buscara.

Ele arfou, vendo o Deus apenas dois passos a sua frente, mais alto que ele próprio, negros cabelos longos, cacheados, e barba curta, profundos e brilhantes olhos escuros que pareciam conhecer todos os mistérios de sua alma, a pele pálida, sobre músculos perfeitamente talhados de um guerreiro que já vencera diversas batalhas, todo o corpo coberto por uma curta túnica negra e um manto verde escuro. O ser a sua frente não apresentava qualquer imperfeição e parecia alheio a qualquer fraqueza.

- Hades. – Sussurrou, incapaz de esconder sua fascinação.

O Deus abriu um meio sorriso sarcástico e respondeu, no mesmo tom grave:

- Eu sei quem sou. E também me recordo de ti, jovem Orfeu. Agora responda, por invadiu meu palácio, de espada em punho, como um ladrão qualquer?

Agora, olhando diretamente para Hades, Orfeu sentiu-se um tolo ao imaginar, sequer por um segundo, que poderia enfrentá-lo. Porém o ódio ainda queimava forte em seu peito e respondeu:

- Não faça perguntas para as quais já sabe a resposta. Sabes que o único desejo que preenche minha alma é o de vingar o mal que me causou! – externou toda sua cólera em cada palavra, apertando mais forte o cabo da espada em sua mão.

- Pobre e tola criança, não teme despertar a ira de um Deus? Você, que já veio a mim com o coração repleto de amor, agora retorna com as chamas do ódio embaçando seu olhar. – Respondeu sem demonstrar qualquer surpresa ou desgosto pela fúria do invasor.

- Você, cruel senhor, me iludiu prometendo devolvê-la a mim e então nos condenando a ficarmos eternamente presos neste mundo sem luz. – Sentia sua fúria aumentar a cada palavra dita, ainda mais diante da implacável calma do senhor do submundo.

- Não ouse acusar-me em falso! Esquece esse ódio que te cega e veja a verdade, eu jamais te iludi, Orfeu.

- Então se esqueceu de como vim parar aqui? Que desci ao submundo em busca de minha amada e te ofereci minha própria vida pela dela?

- Lembro-me muito bem deste triste episódio. – Respondeu o Deus, fechando os olhos por um instante, como se a história lhe incomodasse. – Como poderia esquecer aquele dia? Tua musica tomou os salões deste palácio e encheu o mundo dos mortos. Por aquele instante, todos os habitantes do meu reino pararam para ouvir as belas notas que tirava da lira, até mesmo os ímpios destinados ao Tártaro, naquele instante deixaram de sofrer...

- Esta é a parte que guarda na memória? Pois não consigo deixar de reviver o que aconteceu depois! Da falsa promessa que me fez!

- É a segunda vez que lhe aviso sobre acusar-me falsamente, não prometo manter minha paciência se houver uma terceira. – Falou o Deus, em um tom mais sério e duro que antes. – Eu me lembro bem do que lhe prometi, falei que lhe atenderia qualquer desejo em troca da bela melodia com que me presenteou.

- E eu lhe disse que meu único desejo era retornar a superfície com minha amada Eurídice! – Exclamou com tal ira, que fez o metal da espada em sua mão ressonar.

- E eu lhe aconselhei que me pedisse qualquer outra coisa, pois não se deve ir contra os ciclos da natureza. – respondeu Hades, voltando a um tom calmo e suave.

- Mas nada é impossível para ti, não é verdade, Grande Rei dos Mortos? Por que seria difícil para o Senhor do Submundo devolver a vida a uma única mortal?

- Esquece que sou o senhor do submundo e que em meu reino recebo aqueles que retornam de uma existência na superfície. Eu lhes ofereço abrigo, para que descansem, até que esteja na hora de provarem uma nova existência. Porém as particularidades da morte são tantas, que não se encontram apenas em meus domínios. – Olhou diretamente para o lirísta, fixando seu olhar nos olhos castanhos do mortal. – Embora tenha razão em afirmar que esta entre meus poderes devolver uma alma a superfície, há coisas que mesmo um Deus não deve fazer.

- Não me venha com sofismas, rei malvado, não mais me deixarei enganar por teus longos discursos e belas palavras!

- Pela terceira vez me ofende e acaba por conseguir esgotar minha paciência, Orfeu. Torne a me desrespeitar e o teu destino será o Tártaro. – Decretou de volta ao tom sério, sem desviar os olhos do mortal, que mesmo em fúria, encolheu diante da sentença. – Eu não te alertei sobre o risco do que me pedia? Sobre as consequências de se alterar tão brutalmente a tapeçaria do mundo, prolongando o fio da vida de alguém?

- O que me importaria toda a tapeçaria do mundo? Sem Eurídice o mundo perdeu a beleza, as cores perderam o brilho e minha lira perdeu o som. Eu retalharia toda a tapeçaria do universo se isso me permitisse tê-la novamente!

- Eu bem me lembro deste teu discurso no dia em que trouxe teu pedido a mim, o belo amor que brilhava em teus olhos me emocionou tanto quanto tua musica e, mesmo sabendo que não devia, concedi teu desejo.

- Eu acreditei em você, sabia que dentre todos os Deuses, deveria entender que o amor é capaz de superar a barreira entre os mundos e que não há leis que não se possam violar por ele. – Falava, sentindo sua raiva esmorecer diante da lógica das palavras do Deus, mas ainda incapaz de abrir mão de seu ódio.

- Se pretende ferir os desígnios da natureza por um amor, há de se estar preparado para enfrentar as consequências de seus atos. – Embora cansado dos desrespeitos de Orfeu, Hades retornou ao tom calmo e paternal. - Eu te alertei que não olhasse para trás até que tivesse saído completamente do mundo inferior, mas você esqueceu meu aviso.

- Foi uma condição cruel! Sabia que ela viria sempre atrás de mim, que eu iria querer olhá-la e ver o brilho em seus olhos quando estivéssemos chegando à superfície.

- Sim, eu sabia e por isso eu lhe alertei que nunca, em hipótese alguma, olhasse para trás antes do fim da travessia, sobre a pena de jamais poderem sair daqui.

- Por que tal maldade, eu pergunto? Por que primeiro me tiram minha amada e depois, quando finalmente que consigo recuperá-la, somos condenados a ficarmos presos neste mundo. Será este o cruel senso de humor dos Deuses?

- Pobre e tola criança, ainda não entendeu que foi a sua própria arrogância que lhe iludiu. – Orfeu reconheceu aquelas palavras e percebeu que o Deus a sua frente era o ancião que havia encontrado na estrada, mas antes que pudesse absorver completamente a informação, Hades continuou a falar. – O homem é livre para tecer sua própria história, mas há coisas que não são possíveis de se mudar. Um fio partido não deve ser remendado, é necessário concluir ali aquele desenho e buscar uma nova linha, para então reiniciar o trabalho.

- Esta me dizendo que deveria ter simplesmente aceitado viver sem ela? – Não havia mais raiva na voz de Orfeu, apenas dor e tristeza.

Como um pai amoroso, Hades ergueu o rosto do musico, mantendo seu olhar firme no dele e lhe falando de forma cálida:


- Estou lhe dizendo que deveria ter aceitado o fim deste ciclo e compreendido que novos viriam, que poderiam se reencontrar em um futuro cruzar de linhas mais a frente. – Orfeu deixou que duas lágrimas corressem de seus olhos e Hades lhe abraçou. – Pobre e tola criança, abandone este ódio, deixe de tentar desfazer os nós de uma linha que já acabou. Você me acusa de mantê-los presos em meus domínios, mas não percebe que o que lhes aprisiona é o seu ódio. Liberta a você e a sua doce amada da raiva por um desenho que não lhe agradou. Para que assim, permita-se, e a ela, se valerem de novos fusos, para criarem, talvez e, se quiserem, ainda juntos, novos e maravilhosos desenhos.

Fim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário