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“Mate-os!”
No início ouvia pouco mais que um sibilar
baixo, como uma corrente de ar frio atravessando sua pele e causando arrepios.
Porém com o tempo o volume foi aumentando e as palavras ficando mais claras.
Era
uma voz inumana, envelhecida e rouca, que ecoava de modo ameaçador como o
chocalho na cauda de uma cascavel, repetindo a mesma ideia sinistra.
“Mate-os!”
Ouviu novamente, incapaz de identificar sua origem. Assustada, movia a
cabeça de um lado para o outro buscando identificar qualquer indicação sobre de
onde viria aquela voz. Tentando controlar seus tremores, para não alarmar ainda
mais seus irmãos menores.
Já
perguntara três vezes se eles tinham escutado alguma coisa, porém os dois
negavam, apenas aumentando seu nervosismo. Desistiu de perguntar, pois isso só
os deixaria mais assustados.
“Mate-os!”
Tampou os ouvidos com as mãos e abaixou a cabeça, encolhendo-se,
tentando evitar ouvir. Sentia seus olhos arderem devido às lágrimas, que não
queria derramar. Nunca fora de chorar e não começaria agora, tinha que ser
forte, precisava ser forte!
“Mate-os! Salve a si mesma.”
Agora
que finalmente havia parado de correr, sentia frio e medo. A voz soava cruel,
parecia se divertir com seu desespero.
Ainda
não entendia bem o que tinha acontecido. Era noite alta e estava dormindo,
quando o som dos motores rasgou o silêncio, fazendo-a acordar no susto.
Sua
mãe entrou na oca correndo e puxou-a para fora da cama, bem como aos seus
irmãos, forçou uma abertura em uma das paredes de barro e os ordenou que
corressem para a floresta.
Ela
tentou perguntar o que estava acontecendo, mas sua mãe apenas disse que não
havia tempo. A mulher abraçou as três crianças, com força e a garota a ouviu
soluçar, antes que o som seco do disparo de armas ecoasse na pequena oca.
Imediatamente, a mãe os soltou e tornou a ordenar que corressem para a mata,
empurrando-os.
- Proteja seus irmãos! – Ela ainda ouviu
sua mãe gritar, enquanto corria para a floresta puxando os dois meninos pelas
mãos.
Correram,
ouvindo o som de gritos e luta, embrenhando-se na mata cerrada até estarem tão
fundo que já não se escutava mais nada. Então, os sussurros começaram.
“Mate-os!”
Era
como se o som viesse de todas as direções e do fundo de sua mente, frio e
sinistro.
Pensou na injustiça da situação, erguendo
o olhar e observando os irmãos que a olhavam preocupados. Ela só tinha 11 anos!
Como poderia proteger alguém?
Raoni,
de nove anos, abraçava firme Teçá, de cinco, tentando manter a pose de
guerreiro valente que seu pai sempre incentivava. Porém, estava claro, nos
grandes olhos castanhos, o pavor.
-
Kauane. – chamou, com toda a firmeza que sua voz de menino poderia conter. –
Para onde vamos?
A
garota permaneceu em quieta, olhando-os, o silêncio na mata parecia pesar sobre
si. Não sabia responder.
Ela nem gostava da mata, de todas aquelas
plantas e bichos. Seu sonho era escapar de tudo aquilo, queria ir para São
Paulo ou pro Rio de Janeiro. Dizia que ia ser atriz.
Nunca prestara muita atenção nas lições
do velho pajé. Não conhecia muito além da aldeia, pois fugia de ajudar a mãe na
colheita de alimentos, indo assistir televisão na pequena cabine onde os
soldados, que guardavam a reserva, descansavam.
Onde estariam os soldados? Por que não
protegeram a reserva dos invasores? Por que não ouvia qualquer movimento
indicando o que havia acontecido em sua aldeia?
O terror se fechou como um punho em volta
de seu coração, enquanto sentia o peso dos olhares de seus irmãos sobre si,
aguardando sua resposta. Para onde iriam? Onde poderia deixá-los em segurança?
E se os invasores viessem na direção em que correram e os encontrassem, o que
fariam com eles?
“Você não pode protegê-los, mate-os!”
A voz voltou a soar em sua cabeça, como
um chocalho tocando cada vez mais alto.
- Não! – Gritou para o nada, decidida a
vencer o medo.
Seus irmãos deram um passo para trás
assustados e ela cobriu a boca com as mãos, como se pudesse puxar de volta o
som. Varrendo o ambiente e atentando-se a todos os ruídos, verificando se tinha
atraído alguma coisa.
Respirou fundo três vezes e trançou os
cabelos negros, a fim de evitar que continuassem a cair em seu rosto e
atrapalhar sua visão. Olhou séria para os irmãos:
- Ouçam bem: Nós vamos sair daqui, eu
prometo. – Disse e tentou sorrir, passar qualquer confiança que não sentia,
como quando dizia para professora que tiraria nota melhor na próxima prova de
matemática. – Mamãe mandou proteger vocês e eu farei isso, ok?
Viu Teçá fazer um pequeno aceno com a
cabeça, engasgando um soluço, só então percebendo que o pequeno chorava. O mais
velho também acenou de modo afirmativo, determinado a ser valente.
Por um instante, sentiu-se feliz
percebendo a confiança que os irmãos tinham em si, mas uma risada sinistra no
fundo de sua mente a fez se arrepiar e duvidar de que pudesse cumprir sua
promessa.
- Para onde vamos? – Tornou a perguntar
Raoni, afastando-a de seus pensamentos sinistros.
- Precisamos encontrar os soldados e
pedir ajuda, temos que ir até um posto de observação. – Falou a menina,
pensando em voz alta.
- Mas nós corremos na direção oposta a do
posto, Kauane, e se voltarmos os invasores podem nos ver! – O menino retrucou,
deixando entrever o medo que sentia.
A jovem mordeu o lábio inferior,
refreando o impulso de mandá-lo calar a boca. Sabia que ele tinha razão,
pensara a mesma coisa, mas ouvir em voz alta só deixava a situação mais real.
Optou por permanecer quieta, preocupada
porque a mata permanecia silenciosa, como se estivesse de luto pela violência
cometida contra os indígenas.
De repente, ouviu o som de cascos sobre o
chão de folhas em decomposição e, com ajuda apenas da pequena iluminação promovida
pela lua crescente e as estrelas, vislumbrou a silhueta de um porco-do-mato
surgir à frente.
O animal ficou parado e franziu o focinho
algumas vezes, como se os farejasse, então se virou e retornou por onde tinha
vindo.
Kauane não sabia explicar o motivo, mas
sentiu que devia seguir o animal.
- Por ali. – Falou simplesmente,
decidindo confiar em seus instintos. Sinalizando que os irmãos a acompanhassem.
Andou poucos passos e se surpreendeu em
ver que o animal tinha parado, como se os esperasse. Seu pelo parecia brilhar
de forma fantasmagórica e os olhos eram profundos e atentos, diferente do que
se esperaria daquele animal. Porém, ao ouvir os humanos se aproximarem, o
porco-do-mato tornou a se movimentar com agilidade e a menina sentiu ainda mais
forte a necessidade de segui-lo.
-
Vamos atrás dele, depressa! – Falou para os irmãos, a voz soando enérgica e até
esperançosa.
-
Atrás de quem? Do caititu? Por que você quer seguir um caititu, Kauane? –
Perguntou Raoni, soando como se acreditasse que a irmã havia enlouquecido.
“Louca, louca, pobre curumim, perdida
na selva com seus irmãos... Indefesa. “ A voz debochava dela, áspera e fria como a pele de um lagarto. “Mate-os, mate-os e salvo você.”
Reconheceu
o desagradável arrepio de medo. Talvez estivesse mesmo enlouquecendo, seguindo
um animal qualquer no meio do mato a noite, ouvindo vozes que ninguém mais
ouvia. Se continuassem por este caminho, podiam se perder e jamais os
encontrariam, acabariam mortos de fome.
Raoni
estava sério, aguardando sua resposta, e ela simplesmente não sabia o que
responder.
-
Caipora. – Murmurou o mais novo, baixinho, olhando fixamente para o
porco-do-mato. Os dois irmãos se voltaram para ele, que se encolheu intimidado.
– Semana passada o Pajé contou a história do Caipora, ele protege os animais e
faz caçadores se perderem. O caititu é a montaria dele.
A
menina se desesperou. O animal havia parado poucos metros a frente, como se os
esperasse. Porém agora perdera a certeza em segui-lo. E se as lendas fossem
reais? Se fosse um espírito travesso da floresta, os fazendo ficar ainda mais
perdidos?
Teve
vontade de rir. Desde quando ela acreditava nessas lendas absurdas? Porém,
também, desde quando vozes ecoavam em sua cabeça dizendo para matar seus
irmãos?
“Mate-os e eu te ajudo a encontrar o
caminho para fora da floresta.”
A
voz disse e ela se convenceu de que devia fugir.
-
Você não vai me enganar, Caipora! – Gritou para o porco, não se importando em
como isso a fazia parecer.
Então,
agarrou seus irmãos pelos pulsos, correndo por uma abertura lateral em meio às
árvores e arbustos espinhentos, fugindo das trapaças do animal.
Correram
até ficarem sem fôlego, parando em uma clareira. Kauane não fazia a menor ideia
de onde estavam. Entre a fuga da aldeia, seguir o porco-do-mato e então fugir
dele, perdera-se completamente.
Não
sabia quanto tempo havia se passado ou o quanto ainda faltava para o sol
nascer. Não tinha certeza se a luz do sol teria qualquer utilidade, mas rezava
para que, com a chegada dela, a voz sumisse. Talvez conseguisse achar um
caminho e descobrir o que houve com sua aldeia.
“Estão todos mortos, Kauane, os invasores
mataram a todos. Sacrifique os meninos e eu salvarei a aldeia.”
Era
mentira, ela sabia que era mentira, tinha de ser. Não era possível que toda a
aldeia tivesse sido morta e, se fosse verdade, como poderia matar seus irmãos?
A única família que lhe restara?
“Mate-os e eu trarei todos os outros de
volta.”
A voz sibilou, pegajosa, como uma serpente envolvendo seu corpo. Olhou
seus irmãos sentados no chão, ofegantes. Os cabelos estavam bagunçados, os
shorts que usavam para dormir sujos de terra e Raoni tinha arranhões por todo o
corpo, provocados pelos arbustos enquanto corriam.
Sentiu
vergonha em ver o irmão machucado, ele se machucara protegendo o mais novo,
enquanto ela corria por impulso, movida pela própria insensatez e sem pensar em
mais ninguém. Sentiu-se tão mesquinha e pequena, não merecia os irmãos que
tinha. Os dois meninos eram tão fortes! Teçá se esforçava para esconder as
lágrimas que não conseguia segurar, enquanto Raoni mantinha-se firme, disposto
a ser um guerreiro.
Ela
os abraçou com força, puxando suas cabeças para seu colo. Diferente de sua mãe,
seu corpo ainda era pequeno e magro, pouco desenvolvido e incapaz de acomodar
as cabeças de seus irmãos de forma confortável. Porém não se importava,
precisava deles ali, bem juntinhos dela.
-
Tão valentes, meus pequenos guerreiros, vocês são tão valentes! Eu também serei
valente, não vou falhar com vocês, meus guerreiros. – Ela murmurou baixinho,
mais para si do que para eles, sentindo novas lágrimas arderem em seus olhos.
Seus
irmãos a abraçaram de volta, buscando em seu abraço magro qualquer resquício da
proteção que o colo materno os oferecia.
Durante
alguns minutos as crianças encontraram consolo nos braços uns dos outros e na
mata, que ali, voltava a ter seus sons habituais.
Foi
por isso que o retorno do silêncio os deixou em novo em alerta. Então, o
ambiente foi tomado pelo som de cascos se aproximando com fúria. Não o som leve
dos passos de um pequeno porco-do-mato, mas o terrível som de uma besta, que
parecia destruir tudo em seu caminho!
Do
meio das árvores veio um som espectral, algo entre um balido e um rosnar,
enquanto a criatura sombria avançava, agora próxima o suficiente para ser
possível enxergar longos chifres de carneiro se projetando da cabeça.
Aterrorizadas,
as crianças, mesmo exaustas, tornaram a por-se
de pé e a correr. A criatura criando um caminho de destruição em seu
encalço.
Identificando
uma árvore com galhos baixos, Kauane sinalizou para que subissem. Raoni indo na
frente para puxar Teçá, enquanto ela ia por último, cuidando para que nenhum
deles caísse.
Atingindo
a copa, eles olharam para baixo e o que viram gelou o ar em seus pulmões.
O
monstro parecia um enorme carneiro, embora andass nas duas patas traseiras.
Bateu os cascos das patas dianteiras contra a árvore em que estavam, fazendo-a
estremecer e soltou um urro. A bocarra aberta, deixando amostra duas fileiras
de dentes afiados como os de um crocodilo.
Gritaram,
vendo-o continuar a circular a árvore, com os terríveis olhos flamejantes
focados neles, batendo em seu tronco e cavando suas raízes, disposto a
derrubá-la.
“Mate-os!” a voz repetiu, de modo ainda
mais enérgico, fazendo-se ouvir por cima dos gritos. “Sacrifique seus irmãos, entregue-os ao monstro e a salvarei.”
A
criatura não parava suas investidas e a árvore, cada vez mais, próxima de
ceder. O cheiro de morte e podridão que ele exalava era nauseante, tornando-se
difícil a respiração.
Sentindo
a árvore tombar, a menina fez a única coisa que pode pensar, agarrou os irmãos
e girou com eles quando atingiram o solo, tentando evitar
maiores ferimentos.
No entanto, ao se levantar, percebeu que torcera o tornozelo.
Queria
gritar, chorar e entrar em pânico, mas não podia, a criatura estava vindo.
Precisavam correr, mas não conseguiria machucada. Em meio ao medo, cogitou
desistir e entregar os irmãos, pois assim, pelo menos ela, iria
sobreviver.
Foi
quando percebeu que seus irmãos haviam se desvencilhado de si, já estavam de pé
e a puxavam, incitando-a a se levantar e a tornar a fugir. Eles gritavam por
ela e, mais uma vez, teve vergonha de si mesma. Como pudera pensar em
entregá-los? Eles que não fugiriam sem ela.
Deixando
as lágrimas de vergonha caírem, pôs-se de pé e voltou a correr, cambaleante.
Eles tentavam se embrenhar entre as árvores altas, a fim de talvez atrasá-lo,
mas nada parecia efetivo.
-
Caititu! – Gritou Teçá, apontando para um ponto mais a diante do caminho.
Reconheceram
o mesmo porco-do-mato de antes, o pelo brilhante mesmo com pouca iluminação.
-
Atrás dele! – Kauane bradou, dominada por puro instinto.
-
Mas e se for o Caipora nos levando para uma armadilha? – Perguntou Raoni de
volta, assustado.
- O
que pode ser pior do que o monstro atrás de nós?! É a nossa única chance! –
Respondeu a menina, sem ter mais o que dizer.
O
porco corria na frente deles, mais rápido do que qualquer um que já tivessem
visto e as crianças o acompanhavam. Ouviam os constantes urros do monstro que
os perseguia, mas também ouviam gritos e assobios, como se algo tentasse
distrair a criatura.
O porco-do-mato os levou até as margens
de um rio, onde as águas corriam com força selvagem e parou.
-
Não! – Exclamou Raoni, com um misto de fúria e desespero. – Olha para onde o
maldito porco nos trouxe! É impossível atravessarmos essa correnteza e o
monstro está vindo!
“Mate-os... Afogue-os no rio, entregue-os ao
meu filho e eu a salvarei!”
A
voz soava tão satisfeita, parecia ser o fim de tudo. Sentia-se vazia, sem
qualquer esperança e, por um segundo, a constatação de que nada poderia fazer
parecia tranquilizadora. Sua única chance de sobreviver era matar seus irmãos,
mas jamais o faria. Portanto o destino de todos estava traçado.
Ouvia
o som dos cascos se aproximarem, parecendo tão altos que chegavam a abafar os
berros assustados de seus irmãos. Era isso, morreriam seus irmãos e ela,
vítimas da crueldade dos homens que atacaram seu aldeia e dos espíritos da
floresta, que se divertiam com sua agonia. Jamais seria uma atriz ou conheceria
o Rio de janeiro, nem veria sua mãe novamente ou poderia implicar com Raoni por
uma corda de arco frouxa, era o fim.
Foi
necessário apenas meio segundo para que pensasse em tudo isso. Os últimos
instantes de vida sempre parecem mais longos que o normal.
Tomada pelo conformismo, permitiu-se
observar o local onde estavam. O som da correnteza do rio era alto, tinham
poucas árvores em sua margem, deixando limpa a vista do céu azul bem escuro,
repleto de estrelas, com a lua crescente se deitando no oeste. Era um lugar
bonito para se morrer, apenas algumas palmeiras ao seu redor e... Palmeiras!
Foi quando, como se num estalo, as
lembranças de uma tarde, ouvindo as lendas que o pajé contava, viessem a sua
mente.
Estava reunida com as outras crianças no centro
da aldeia, onde o idoso colocava seu banco. Ele falava sobre a origem do mundo:
- Então quando Tau, a origem de todo o mau,
conseguiu capturar Kerana, a mais bela filha do pai e da mãe de todos os povos,
fez nela sete filhos. Que amaldiçoados por Jaci, viraram os sete monstros
lendários... – Kauane estava entediada, sem nenhum interesse em mitos antigos,
então apenas entreouvia alguns pedaços. – Ao Ao é o monstro guardião das montanhas,
possui a forma de um carneiro e presas afiadas, que usa para destroçar suas
vítimas... – Lembrava de ter sentido vontade de rir. Achava que aquilo não
passava de mentiras, que os adultos contavam para que as crianças não fossem
muito para dentro da floresta. – Quando o Ao Ao escolhe sua presa, a persegue
por qualquer distância ou tempo, incansável. O único modo de escapar é subindo
em uma palmeira, pois a magia dessa árvore o impede de derrubá-la.
Lembrara-se! Não conseguia acreditar, mas
lembrara-se e, agora, eles tinham uma chance de viver!
- Subam nas palmeiras! – Gritou, no mesmo
instante em que o monstro chegava à margem do rio. – Depressa, subam! – Tornou
a gritar, puxando seus irmãos na direção das árvores.
Logo os três estavam escalando o tronco
fibroso. Seus pés e mãos queimavam, forçando seus corpos para cima. Quando
atingiram suficiente altura, as crianças firmaram suas pernas no entorno da
árvore, ignorando a dor, e deram-se as mãos, segurando-se uns nos outros.
No solo, o monstro parou, olhando com
fúria para a árvore em que as crianças fizeram de abrigo.
Segurando sua respiração, eles o viram
virar-se para o porco-do-mato, que permaneceu parado, impassível. Durante
alguns instantes, os dois seres se encararam e então o monstro soltou um som
frustrado e partiu, retornando por onde tinha vindo.
“Mate-os! Mate-os agora! Mate-os, criança idiota,
sacrifique seus irmãos para mim e eu salvarei sua aldeia!”
A voz soava irada e causticante, o ecoar
do chocalho chegando a doer nos ouvidos. Porém agora, a menina sentia-se mais
corajosa do que nunca.
- Não seguirei seus maus conselhos, Tua.
Pois Tupã enviou seu filho Caipora para nos proteger. – Ela falou de modo suave
e, na terra, o porco-do-mato grunhiu em resposta, como se concordando.
Quando as crianças sentiram-se seguras
para descer da palmeira, a lua quase sumira e o céu começava a clarear no
horizonte.
De volta ao chão, Kauane acariciou a
cabeça de seus dois irmãos, ajeitando seus cabelos e depositou um beijo na
testa de cada um. Então se ajoelhou na frente de Teçá, ficando na mesma altura
que ele e disse:
- Não lembrava, mas quando o pajé nos
contou de Caipora, disse que ele não apenas protege os animais, mas também
ajuda crianças perdidas a encontrarem seu caminho.
O porco-do-mato voltou a grunhir.
Chamando a atenção das crianças e virando-se, indicando que deviam continuar a
segui-lo.
- Para onde ele está nos levando agora? –
Perguntou Raoni, ainda desconfiado.
Kauane apenas sorriu, sentindo-se
cansada, mas satisfeita. Posicionou as mãos nas costas de cada irmão,
incentivando-os a andar. E, enquanto seguiam o animal, respondeu:
- Para Yvy Marã Ey, a Terra Sem Males.
Fim.
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