O
calor do fim de tarde era agradável. Mesmo em meio à cidade, o jardim do museu
tinha um ar místico, cheio de árvores antigas e estátuas curiosas. Ela amava o
local e amava estar ali com ele, dividindo o acento em uma das pedras que
enfeitavam o lago artificial, onde os patos nadavam com tranquilidade.
Olhou
para seu companheiro, sorrindo ao enxergá-lo por baixo do encanto, as orelhas
pontudas, os chifres de carneiro e os profundos e misteriosos olhos dourados.
Ele
a olhou diretamente, abrindo um sorriso que parecia grande demais para seu
rosto, e ela se ajeitou no pelo macio das patas de cabra.
Se
algum passante olhasse diretamente e com atenção, talvez conseguisse
enxergá-los através do encanto que os deixava praticamente invisíveis. Ela ria,
vendo as pessoas caminharem distraídas, sem imaginar o universo de seres com
quem compartilhavam aquele espaço bucólico.
Espreguiçou-se,
levantou do colo de seu namorado e sentou de frente para ele.
-
Terei de ir daqui a pouco, infelizmente. Gostaria de poder ficar para sempre
aqui com você, Darius.
O
sátiro se inclinou, fechando uma das mãos sobre os cabelos castanhos de sua
nuca e puxando-a para um beijo apaixonado.
Sentiu
o corpo esquentar e o estômago retorcer em excitação, envolvida pelo cheio de
terra e mato que ele emanava, a língua em sua boca realizando desenhos sinuosos
enquanto explorava todo o interior e se enrolava na sua.
Mordiscou
o lábio inferior de Darius, soltando um baixo gemido contrariado quando se
separaram.
-
Eu gostaria que ficasse comigo pela eternidade, Marcele. – A voz rouca
provocava arrepios no corpo da garota, enquanto a mão que antes estava em seus
cabelos, acariciava a lateral do rosto corado pelo sol.
A
jovem sorriu, se entregando a carícia.
-
Se eu não tivesse uma vida inteira construída fora daqui. –Falou, sorrindo
docemente.
Se
beijaram mais uma vez, com a mesma paixão, antes que o sátiro torna-se a falar:
-
Você poderia abandonar tudo, fugir e viver comigo, em meu mundo. – Propôs,
olhando-a diretamente nos olhos.
Porém
a garota desvencilhou-se dele, assumindo uma expressão contrariada por alguns
instantes, antes de voltar a falar em um tom de brincadeira, a fim de aliviar o
peso que tomou o ambiente.
-
Já conversamos sobre isso, Darius. Esta me pedindo que abandone tudo e todos
que conheço, a vida que construí, que eu largue tudo por você! – Forçou uma
risada fraca. - Acha isso justo? – Perguntou, mantendo seu olhar grudado no
dele, que desviou por um instante, sem saber o que responder. – Em seu mundo,
eu seria sempre a humana estranha... Mas você é capaz de transitar entre
humanos, se passar por um de nós sem que te questionem, por que você não vem
para o meu mundo?
- O
que? Esta sugerindo que eu abra mão de tudo que tenho? – Darius perguntou,
incrédulo, com seu rosto em uma clara expressão de desagrado.
-
Ué, você não me pediu que fizesse exatamente isso? – Retrucou simplesmente.
-
Mas você é uma garota, tem apenas 17 anos, é mais fácil. – Tentou argumentar.
-
Por que seria? Você já transita entre os dois mundos, conhece o funcionamento
do meu e sabe se passar por humano, é muito mais fácil para você!
O
Sátiro se encolheu, sabendo que o que a garota falava fazia sentido, mas sem
intenção de ceder.
-
É, mas... – Ainda tentou falar, mas ela o cortou.
-
Como eu disse, preciso ir. Pense um pouco e amanhã conversamos, Darius. –
Concluiu.
Uniu
seus lábios em um beijo rápido, antes de realizar a pequena escalada que a
levaria para fora das pedras e fora da influência da magia que os deixavam
ocultos.
Darius
era o primeiro namorado de Marcele e certamente era uma relação especialmente
complicada, pois não era fácil fazer sua família e amigos acreditarem em um
namorado que nunca tinham visto.
Isso
era o que mais irritava a jovem. Quando conhecera o sátiro, ele se passava por
um jovem normal, apenas com as pernas um pouco curvas e um senso de humor
mordaz que o tornara particularmente atraente.
Demorou
alguns meses para que ele lhe contasse a verdade, o que envolveu uma longa
briga sobre mentiras e desconfianças, mas que acabou se resolvendo.
Permaneceram
juntos então, estavam prestes a completar dois anos de namoro e a garota nunca
se sentira tão apaixonada na vida, bastava ouvir o assobiar do sátiro,
indicando sua proximidade e sentia o coração acelerar.
Neste
meio tempo, fora apresentada à um pouco do mundo fantástico ao qual ele
pertencia, conhecera mistérios que a maior parte das pessoas sequer imaginava e
descobrira que muitas lendas eram mais verdades do que mentiras.
Porém
Darius se recusava a frequentar o mundo dela, após ter revelado o que realmente
era, ele não mais queria saber de andar entre outros humanos e realizar
atividades típicas da espécie. Embora buscasse levar Marcele cada vez mais para
o seu mundo, rejeitava qualquer possibilidade de interagir com o dela.
Diversas
foram as discussões que passaram, em que ele alegava que a garota era muito
nova e ingênua para entendê-lo, mas que devia confiar nele, e cada vez mais ela
se via cansada de desculpas.
Passaram-se
mais duas semanas em que o casal se encontrou sem tocar no assunto, desfrutando
um da companhia do outro com as conversas e caricias que tanto gostavam. Era um
prazer para Marcela aprender com Darius e tinha prazer em compartilhar as
coisas que gostava com ele, mesmo que ele debochasse e fizesse piadas a maior
parte do tempo.
Porém
o assunto ressurgiu em uma tarde nublada.
- O
colégio esta terminando, mês que vem será meu baile de formatura. – Ela
comentou, acariciando os curtos fios castanhos do cabelo do sátiro, que
repousava deitado em suas coxas.
-
Hum, isso é ótimo. – Darius respondeu de olhos fechados, praticamente entregue
ao mundo dos sonhos.
-
Você podia ir comigo... – Ela tentou falar, mas ele imediatamente se retesou,
abrindo os olhos e se levantando de seu colo.
-
Quantas vezes nós teremos a mesma discussão? – Perguntou severo, com uma
expressão irritada.
-
Eu não quero iniciar uma discussão. Eu estou te convidando para compartilhar um
momento importante comigo! – Respondeu, recusando-se a se deixar intimidar por
ele.
-
Eu já disse que não quero saber de nada que envolva o mundo humano, Marcele! –
Bradou.
-
Ah, é? Bem, uma novidade para você, Darius: Eu pertenço ao mundo humano! – Gritou
de volta.
O
sátiro se encolheu, contrariado, irritado com o fato de ela o enfrentar de
forma tão direta.
-
Você é diferente, meu amor. – Tentou, assumindo uma voz mais doce. – Você é
especial...
-
Eu sou humana, Darius! – Cortou-o de forma mordaz.
-
Sim, mas você é melhor do que os outros, por isso mesmo que eu quero trazê-la
definitivamente para o meu mundo! – Tentou novamente, acariciando o rosto da
jovem, enquanto tentava aproximar-se para beijá-la.
Porém
Marcele apenas desviou o rosto, não caindo no jogo dele.
-
Eu sou humana, Darius, gosto do meu mundo, apesar de todos os defeitos, e não
quero abandoná-lo!
-
Mas é a única forma de ficarmos juntos! – Falou o sátiro, sério, confiante de
que ganhara a discussão.
-
Então nós não podemos ficar juntos. – disse, segurando de modo firme, mas gentil,
a mão que ainda estava em seu rosto e retirando-a. – Eu te amo, mas não posso
abrir mão de quem sou por você.
Ele
arregalou os olhos, incrédulo das palavras que ouvia. Balbuciou:
- O
que você está dizendo?
-
Estou dizendo que a nossa história acaba por aqui. – A jovem respondeu com voz
embargada, sentindo as lágrimas queimarem no canto de seus olhos.
-
Sua egoísta! – Ele bradou com raiva. – Você quer que eu desista de quem eu sou
por você! – Acusou, ficando de pé e fincando os cascos na terra com fúria.
Marcele
também se ergueu, recusando-se a permitir que ele a olhasse de cima.
-
Não, eu quis compartilhar o meu mundo com você. Mas se recusa a ceder o mínimo,
também não abrirei mão de mim! – Concluiu, virando-se para partir.
-
Você vai se arrepender, Marcele, jamais encontrará alguém que a ame como eu! –
Ele ainda gritou, com raiva.
A
jovem continuou andando para longe, deixando que as lágrimas corressem de seus
olhos e lavassem toda a tristeza que parecia comprimir seu coração.
Era
um belo dia de outono, o sol brilhava e deixava o céu em um vivo tom de azul,
sem no entanto esquentar demais. Uma brisa suave acariciava as copas das
árvores no fim de tarde, criando uma suave melodia.
Distraída
acariciava a grande barriga por cima do vestido azul, que dançava ao sabor da
brisa, enquanto assistia os patos nadando com tranquilidade, quando ouviu a voz
familiar:
-
Marcele?
Ela
se virou e sorriu, fazendo surgir covinhas em seu rosto, que estava mais cheio.
-
Darius! – Cumprimentou, reconhecendo-o de pronto.
Pouco
mais de dez anos haviam se passado, ela havia mudado neste período, era uma
mulher feita agora, além de ter cortado os cabelos e decido pintá-los de outra
cor, mas o sátiro mantinha a mesma aparência de antes.
Ele
sorriu, parecendo realmente feliz em vê-la. A abraçou de forma carinhosa e a
olhou de cima a baixo.
-
Olhe só para você! Como está linda!
Ela
riu, a mesma risada doce de sempre.
-
Você não mudou nada, logo, continua lindo.
O
sorriso dele se expandiu diante das palavras, o peito se inflando de orgulho.
-
Fico feliz em saber que encontrou alguém com quem compartilhar a vida e ser
feliz. – Comentou, apontando para a barriga proeminente, que indicava os sete
meses de gravidez.
A
mulher voltou a rir.
-
Obrigada. E você achou alguém?
O
sátiro riu, coçando a parte de trás da cabeça.
-
Sim, sim... Amaryllis, uma ninfa maravilhosa. – Eles trocaram olhares
cúmplices, daqueles que só possuem os que compartilharam uma história. – Parece
que você estava certa, no fim das contas, foi melhor que encontrássemos alguém
de nossos próprios mundos.
-
Bem, sobre isso...
-
Marcele! – Uma voz chamou, vindo de onde duas grandes árvores entrelaçavam seus
galhos, um conhecido portal entre mundos, interrompendo-a.
Do
portal, saiu um ser alto, de formas humanas masculinas, muito magro. No lugar
dos braços tinha asas emplumadas, que terminavam em mãos escamosas, de três
dedos. Sua pele era verde claro, os longos cabelos cor de rosa e os olhos
negros não tinham pupila, como os de um pássaro. A criatura se aproximou,
analisando Darius com desconfiança, enquanto abraçava a mulher.
Marcele
sorriu para ele, que pareceu relaxar, e trocaram um beijo breve, apenas um
encostar de lábios. Momento em que a aparência do ser mudou lentamente, o corpo
tornando-se totalmente humano, com a pele assumindo um tom rosado e os cabelos
um ruivo alaranjado. Quando separaram as bocas e o homem abriu os olhos, eles
estavam castanho escuros e totalmente humanos.
-
Este é o meu marido, Carcará. – Falou simplesmente, mordendo o lábio inferior
diante do olhar espantado do sátiro. Então completou, virando-se para o marido.
– Este é Darius, de quem já falei.
O
rosto do ser assumiu uma expressão de compreensão e ele estendeu a mão para o
sátiro.
- É
um prazer conhecê-lo. – Falou de modo formal.
Darius
estendeu a própria mão, ainda parecendo atônito e incapaz de parar de olhar de
um para o outro. Marcela apenas riu, entendendo sua confusão.
-
Conheci Carcará há três anos, em uma viagem a uma cidade que ficava próxima a
uma reserva florestal. Devido a nossa história, logo percebi o que ele era e
não quis me envolver, com medo de passar novamente pelo sofrimento que tivemos.
– Darius abaixou os olhos, as lembranças ainda pesando em seu coração. – Porém
ele teve a sabedoria que nenhum de nós tivemos naquela época. Carcará me
mostrou que se nos organizássemos e planejássemos direitinho, nenhum de nós
teria de abrir mão de nossas vidas em nossos respectivos mundos.
O
sátiro acenou a cabeça uma vez concordando, mas sentindo-se contrariado.
-
Porém aí esta ele, escondendo quem realmente é, para acompanhá-la ao mundo
humano.
Antes
que a mulher pudesse responder, seu marido tomou a palavra.
- É
um conforto pelo qual optei. Marcela veio me encontrar, depois de um dia de
trabalho que tive de fazer por aqui. Escolhemos uma casa em um bairro que tem
bastante vegetação por perto, então portais são abundantes. Eu sigo vivendo em
meu mundo e ela no dela, mas, no fim do dia, estamos reunidos em um mundo
apenas nosso, na interseção destes dois.
Darius
ficou em silêncio por alguns segundos, refletindo sobre as palavras de Carcará,
até que abriu um sorriso e estendeu a mão, oferecendo um novo cumprimento.
-
Fico feliz por terem tido a sabedoria necessária para encontrarem um meio de
ficarem juntos e desejo toda a felicidade.
O
homem-pássaro aceitou o novo aperto de mão, sorrindo educadamente.
Em
seguida, Marcela abraçou o sátiro, depositando um beijo em cada uma de suas
bochechas.
-
Eu também desejo toda a felicidade a você, meu amigo.
Os
três sorriram e se despediram. Darius assistiu o casal partir sentindo-se leve.
Então retomou seu caminho, sorrindo feliz, sabendo que Amaryllis o esperava.
Fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário