quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Amores Fantásticos.

         O calor do fim de tarde era agradável. Mesmo em meio à cidade, o jardim do museu tinha um ar místico, cheio de árvores antigas e estátuas curiosas. Ela amava o local e amava estar ali com ele, dividindo o acento em uma das pedras que enfeitavam o lago artificial, onde os patos nadavam com tranquilidade.

         Olhou para seu companheiro, sorrindo ao enxergá-lo por baixo do encanto, as orelhas pontudas, os chifres de carneiro e os profundos e misteriosos olhos dourados.

         Ele a olhou diretamente, abrindo um sorriso que parecia grande demais para seu rosto, e ela se ajeitou no pelo macio das patas de cabra.

         Se algum passante olhasse diretamente e com atenção, talvez conseguisse enxergá-los através do encanto que os deixava praticamente invisíveis. Ela ria, vendo as pessoas caminharem distraídas, sem imaginar o universo de seres com quem compartilhavam aquele espaço bucólico.

         Espreguiçou-se, levantou do colo de seu namorado e sentou de frente para ele.

         - Terei de ir daqui a pouco, infelizmente. Gostaria de poder ficar para sempre aqui com você, Darius.

         O sátiro se inclinou, fechando uma das mãos sobre os cabelos castanhos de sua nuca e puxando-a para um beijo apaixonado.

         Sentiu o corpo esquentar e o estômago retorcer em excitação, envolvida pelo cheio de terra e mato que ele emanava, a língua em sua boca realizando desenhos sinuosos enquanto explorava todo o interior e se enrolava na sua.

         Mordiscou o lábio inferior de Darius, soltando um baixo gemido contrariado quando se separaram.

         - Eu gostaria que ficasse comigo pela eternidade, Marcele. – A voz rouca provocava arrepios no corpo da garota, enquanto a mão que antes estava em seus cabelos, acariciava a lateral do rosto corado pelo sol.

         A jovem sorriu, se entregando a carícia.

         - Se eu não tivesse uma vida inteira construída fora daqui. –Falou, sorrindo docemente.

         Se beijaram mais uma vez, com a mesma paixão, antes que o sátiro torna-se a falar:

         - Você poderia abandonar tudo, fugir e viver comigo, em meu mundo. – Propôs, olhando-a diretamente nos olhos.

         Porém a garota desvencilhou-se dele, assumindo uma expressão contrariada por alguns instantes, antes de voltar a falar em um tom de brincadeira, a fim de aliviar o peso que tomou o ambiente.

         - Já conversamos sobre isso, Darius. Esta me pedindo que abandone tudo e todos que conheço, a vida que construí, que eu largue tudo por você! – Forçou uma risada fraca. - Acha isso justo? – Perguntou, mantendo seu olhar grudado no dele, que desviou por um instante, sem saber o que responder. – Em seu mundo, eu seria sempre a humana estranha... Mas você é capaz de transitar entre humanos, se passar por um de nós sem que te questionem, por que você não vem para o meu mundo?

         - O que? Esta sugerindo que eu abra mão de tudo que tenho? – Darius perguntou, incrédulo, com seu rosto em uma clara expressão de desagrado.

         - Ué, você não me pediu que fizesse exatamente isso? – Retrucou simplesmente.

         - Mas você é uma garota, tem apenas 17 anos, é mais fácil. – Tentou argumentar.

         - Por que seria? Você já transita entre os dois mundos, conhece o funcionamento do meu e sabe se passar por humano, é muito mais fácil para você!

         O Sátiro se encolheu, sabendo que o que a garota falava fazia sentido, mas sem intenção de ceder.

         - É, mas... – Ainda tentou falar, mas ela o cortou.

         - Como eu disse, preciso ir. Pense um pouco e amanhã conversamos, Darius. – Concluiu.

         Uniu seus lábios em um beijo rápido, antes de realizar a pequena escalada que a levaria para fora das pedras e fora da influência da magia que os deixavam ocultos.

         Darius era o primeiro namorado de Marcele e certamente era uma relação especialmente complicada, pois não era fácil fazer sua família e amigos acreditarem em um namorado que nunca tinham visto.

         Isso era o que mais irritava a jovem. Quando conhecera o sátiro, ele se passava por um jovem normal, apenas com as pernas um pouco curvas e um senso de humor mordaz que o tornara particularmente atraente.

         Demorou alguns meses para que ele lhe contasse a verdade, o que envolveu uma longa briga sobre mentiras e desconfianças, mas que acabou se resolvendo.

         Permaneceram juntos então, estavam prestes a completar dois anos de namoro e a garota nunca se sentira tão apaixonada na vida, bastava ouvir o assobiar do sátiro, indicando sua proximidade e sentia o coração acelerar.

         Neste meio tempo, fora apresentada à um pouco do mundo fantástico ao qual ele pertencia, conhecera mistérios que a maior parte das pessoas sequer imaginava e descobrira que muitas lendas eram mais verdades do que mentiras.

         Porém Darius se recusava a frequentar o mundo dela, após ter revelado o que realmente era, ele não mais queria saber de andar entre outros humanos e realizar atividades típicas da espécie. Embora buscasse levar Marcele cada vez mais para o seu mundo, rejeitava qualquer possibilidade de interagir com o dela.

         Diversas foram as discussões que passaram, em que ele alegava que a garota era muito nova e ingênua para entendê-lo, mas que devia confiar nele, e cada vez mais ela se via cansada de desculpas.

         Passaram-se mais duas semanas em que o casal se encontrou sem tocar no assunto, desfrutando um da companhia do outro com as conversas e caricias que tanto gostavam. Era um prazer para Marcela aprender com Darius e tinha prazer em compartilhar as coisas que gostava com ele, mesmo que ele debochasse e fizesse piadas a maior parte do tempo.

         Porém o assunto ressurgiu em uma tarde nublada.

         - O colégio esta terminando, mês que vem será meu baile de formatura. – Ela comentou, acariciando os curtos fios castanhos do cabelo do sátiro, que repousava deitado em suas coxas.

         - Hum, isso é ótimo. – Darius respondeu de olhos fechados, praticamente entregue ao mundo dos sonhos.

         - Você podia ir comigo... – Ela tentou falar, mas ele imediatamente se retesou, abrindo os olhos e se levantando de seu colo.

         - Quantas vezes nós teremos a mesma discussão? – Perguntou severo, com uma expressão irritada.

         - Eu não quero iniciar uma discussão. Eu estou te convidando para compartilhar um momento importante comigo! – Respondeu, recusando-se a se deixar intimidar por ele.

         - Eu já disse que não quero saber de nada que envolva o mundo humano, Marcele! – Bradou.

         - Ah, é? Bem, uma novidade para você, Darius: Eu pertenço ao mundo humano! – Gritou de volta.

         O sátiro se encolheu, contrariado, irritado com o fato de ela o enfrentar de forma tão direta.

         - Você é diferente, meu amor. – Tentou, assumindo uma voz mais doce. – Você é especial...

         - Eu sou humana, Darius! – Cortou-o de forma mordaz.

         - Sim, mas você é melhor do que os outros, por isso mesmo que eu quero trazê-la definitivamente para o meu mundo! – Tentou novamente, acariciando o rosto da jovem, enquanto tentava aproximar-se para beijá-la.

         Porém Marcele apenas desviou o rosto, não caindo no jogo dele.

         - Eu sou humana, Darius, gosto do meu mundo, apesar de todos os defeitos, e não quero abandoná-lo!

         - Mas é a única forma de ficarmos juntos! – Falou o sátiro, sério, confiante de que ganhara a discussão.

         - Então nós não podemos ficar juntos. – disse, segurando de modo firme, mas gentil, a mão que ainda estava em seu rosto e retirando-a. – Eu te amo, mas não posso abrir mão de quem sou por você.

         Ele arregalou os olhos, incrédulo das palavras que ouvia. Balbuciou:

         - O que você está dizendo?

         - Estou dizendo que a nossa história acaba por aqui. – A jovem respondeu com voz embargada, sentindo as lágrimas queimarem no canto de seus olhos.

         - Sua egoísta! – Ele bradou com raiva. – Você quer que eu desista de quem eu sou por você! – Acusou, ficando de pé e fincando os cascos na terra com fúria.

         Marcele também se ergueu, recusando-se a permitir que ele a olhasse de cima.

         - Não, eu quis compartilhar o meu mundo com você. Mas se recusa a ceder o mínimo, também não abrirei mão de mim! – Concluiu, virando-se para partir.

         - Você vai se arrepender, Marcele, jamais encontrará alguém que a ame como eu! – Ele ainda gritou, com raiva.

         A jovem continuou andando para longe, deixando que as lágrimas corressem de seus olhos e lavassem toda a tristeza que parecia comprimir seu coração.

         Era um belo dia de outono, o sol brilhava e deixava o céu em um vivo tom de azul, sem no entanto esquentar demais. Uma brisa suave acariciava as copas das árvores no fim de tarde, criando uma suave melodia.

         Distraída acariciava a grande barriga por cima do vestido azul, que dançava ao sabor da brisa, enquanto assistia os patos nadando com tranquilidade, quando ouviu a voz familiar:

         - Marcele?

         Ela se virou e sorriu, fazendo surgir covinhas em seu rosto, que estava mais cheio.

         - Darius! – Cumprimentou, reconhecendo-o de pronto.

         Pouco mais de dez anos haviam se passado, ela havia mudado neste período, era uma mulher feita agora, além de ter cortado os cabelos e decido pintá-los de outra cor, mas o sátiro mantinha a mesma aparência de antes.

         Ele sorriu, parecendo realmente feliz em vê-la. A abraçou de forma carinhosa e a olhou de cima a baixo.

         - Olhe só para você! Como está linda!

         Ela riu, a mesma risada doce de sempre.

         - Você não mudou nada, logo, continua lindo.

         O sorriso dele se expandiu diante das palavras, o peito se inflando de orgulho.

         - Fico feliz em saber que encontrou alguém com quem compartilhar a vida e ser feliz. – Comentou, apontando para a barriga proeminente, que indicava os sete meses de gravidez.

         A mulher voltou a rir.

         - Obrigada. E você achou alguém?

         O sátiro riu, coçando a parte de trás da cabeça.

         - Sim, sim... Amaryllis, uma ninfa maravilhosa. – Eles trocaram olhares cúmplices, daqueles que só possuem os que compartilharam uma história. – Parece que você estava certa, no fim das contas, foi melhor que encontrássemos alguém de nossos próprios mundos.

         - Bem, sobre isso...

         - Marcele! – Uma voz chamou, vindo de onde duas grandes árvores entrelaçavam seus galhos, um conhecido portal entre mundos, interrompendo-a.

         Do portal, saiu um ser alto, de formas humanas masculinas, muito magro. No lugar dos braços tinha asas emplumadas, que terminavam em mãos escamosas, de três dedos. Sua pele era verde claro, os longos cabelos cor de rosa e os olhos negros não tinham pupila, como os de um pássaro. A criatura se aproximou, analisando Darius com desconfiança, enquanto abraçava a mulher.

         Marcele sorriu para ele, que pareceu relaxar, e trocaram um beijo breve, apenas um encostar de lábios. Momento em que a aparência do ser mudou lentamente, o corpo tornando-se totalmente humano, com a pele assumindo um tom rosado e os cabelos um ruivo alaranjado. Quando separaram as bocas e o homem abriu os olhos, eles estavam castanho escuros e totalmente humanos.

         - Este é o meu marido, Carcará. – Falou simplesmente, mordendo o lábio inferior diante do olhar espantado do sátiro. Então completou, virando-se para o marido. – Este é Darius, de quem já falei.

         O rosto do ser assumiu uma expressão de compreensão e ele estendeu a mão para o sátiro.

         - É um prazer conhecê-lo. – Falou de modo formal.

         Darius estendeu a própria mão, ainda parecendo atônito e incapaz de parar de olhar de um para o outro. Marcela apenas riu, entendendo sua confusão.

         - Conheci Carcará há três anos, em uma viagem a uma cidade que ficava próxima a uma reserva florestal. Devido a nossa história, logo percebi o que ele era e não quis me envolver, com medo de passar novamente pelo sofrimento que tivemos. – Darius abaixou os olhos, as lembranças ainda pesando em seu coração. – Porém ele teve a sabedoria que nenhum de nós tivemos naquela época. Carcará me mostrou que se nos organizássemos e planejássemos direitinho, nenhum de nós teria de abrir mão de nossas vidas em nossos respectivos mundos.

         O sátiro acenou a cabeça uma vez concordando, mas sentindo-se contrariado.

         - Porém aí esta ele, escondendo quem realmente é, para acompanhá-la ao mundo humano.

         Antes que a mulher pudesse responder, seu marido tomou a palavra.

         - É um conforto pelo qual optei. Marcela veio me encontrar, depois de um dia de trabalho que tive de fazer por aqui. Escolhemos uma casa em um bairro que tem bastante vegetação por perto, então portais são abundantes. Eu sigo vivendo em meu mundo e ela no dela, mas, no fim do dia, estamos reunidos em um mundo apenas nosso, na interseção destes dois.

         Darius ficou em silêncio por alguns segundos, refletindo sobre as palavras de Carcará, até que abriu um sorriso e estendeu a mão, oferecendo um novo cumprimento.

         - Fico feliz por terem tido a sabedoria necessária para encontrarem um meio de ficarem juntos e desejo toda a felicidade.

         O homem-pássaro aceitou o novo aperto de mão, sorrindo educadamente.

         Em seguida, Marcela abraçou o sátiro, depositando um beijo em cada uma de suas bochechas.

         - Eu também desejo toda a felicidade a você, meu amigo.

         Os três sorriram e se despediram. Darius assistiu o casal partir sentindo-se leve. Então retomou seu caminho, sorrindo feliz, sabendo que Amaryllis o esperava.


Fim.

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