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Desde quando podia se lembrar, sempre enxergara os pequenos fios e laços que ligavam as pessoas, formando uma teia colorida ao seu redor. Aprendeu cedo que não devia falar sobre isso, pois os outros pareciam incapazes de ver esses laços e os adultos, sempre tão céticos, achavam se tratar apenas de imaginação infantil.
Porém os via com clareza. As linhas
luminosas que se desprendiam dos corpos das pessoas e as uniam a tudo ao seu
redor, pelos mais diversos sentimentos de diferentes cores. Algumas eram bem
finas, quase invisíveis e outras grossas e bem firmes, sendo difícil acreditar
que não fosse possível tocá-las.
Não
conseguia lembrar os detalhes, pois ainda estava na primeira infância, quando
uma das mais grossas linhas, que saiam diretamente de seu coração, foi partida.
Apenas a dor ficara marcada com força em sua memória, tão profunda que apenas a
lembrança fazia sentir como se seu peito queimasse.
Nunca quis sentir tal dor novamente,
prometeu a si mesma que se protegeria.
No início era difícil, era jovem e ao
enxergar as linhas brotando e se encaminhando para juntarem-se às de outro
alguém, não conseguia evitar. A formação do laço não era desagradável, pelo
contrário era algo muito bom. Porém ela sabia do risco. Se o deixa-se firmar,
quando fosse desfeito a machucaria novamente. Portanto cortava todos, antes que
fosse tarde demais.
Aprendeu, com o passar dos anos, a
controlar melhor os fios e agora os impedia de irem muito além de seu próprio corpo.
Cortando qualquer chance de se prender a alguém, protegendo-se da dor das
possíveis perdas.
Evitava todos os vínculos possíveis,
não tendo muita prática após a primeira grande ruptura que sofrera. Portanto às
vezes fios mais frágeis escapavam de sua atenção e acabavam formando laços, tão
pequenos e fracos, que, como a menina previra, se rompiam e doíam. Uma dor
aguda, ardida como se vários insetos picassem sua pele.
Cada vez mais se recusava a formar
laços e via os diversos fios soltos ao seu redor, pendendo de seu corpo,
impedidos de cumprirem sua função.
Pouco a pouco, sem que a jovem
percebe-se, os fios foram se emaranhando em volta de seu corpo e se
transformando, ficando pesados, duros e sem cor.
Quando atentou para sua própria forma,
a garota se viu envolta em grossas correntes, tão pesadas que a atrapalhavam de
se mover. Elas se envolviam em seus membros, criavam grilhões em seus pulsos,
tornozelos e pescoço, que quanto mais a jovem buscava se movimentar, mais
machucavam sua pele, deixando-a em carne viva.
Presa no emaranhado de correntes, ela
não via onde se segurar para tentar sair, qualquer luta causava extrema dor e o
peso acabava rapidamente com suas forças.
Então, se encolheu em si mesma, com as
grossas correntes impedindo-a cada vez mais de enxergar o mundo ao seu redor,
pesando sobre sua forma e a fazendo apertar-se cada vez mais. Parecia fadada a
sufocar na própria montanha de emoções reprimidas.
Quando estava quase desistindo, ouviu
uma voz:
- Por que você esta sempre sozinha?
Por entre os elos das correntes, ela
pouco conseguia ver da pessoa que se aproximara e ficou surpreendida em
perceber que alguém a notara por entre as correntes que, tinha certeza, a
faziam quase invisível para o resto do mundo.
Não era muito de conversar, normalmente
acabava ferida toda a vez que interagia com alguém, mas qualquer coisa que a
distrai-se do emaranhado de ferro que a aprisionava era bem vindo. Sem saber
bem o que responder, suspirou.
- As pessoas são egoístas e só querem
machucar umas as outras para o seu próprio prazer. Sozinha, evito me ferir. – falar
doía, as correntes ao redor do pescoço apertavam sua garganta.
- Não sei muito sobre isso. – Disse a
estranha, dando uma risada de incerteza. – Mas me parece tão mais doído ficar
sem ninguém... – Parou de falar, parecendo hesitar por um instante. – Sei lá,
existem pessoas idiotas sim, que gostam de machucar os outros, mas também tem
aquelas que valem a pena dar uma chance... Pode até ser que vocês se distanciem
depois e a gente sempre sofre quando alguém querido vai embora, mas, pelo
menos, você viveu várias coisas legais e guarda boas lembranças, né?
Confusa com as palavras da
desconhecida, a garota pensou consigo mesma se realmente existiria algo que
valesse sentir outra vez a dor que ficara marcada em sua memória.
Assustada, viu uma pequena linha se
esgueirar pela barreira de correntes e formar um laço frouxo com outra, vinda
da estranha. Antes mesmo que pudesse impedi-la, tão perdida ficara ao tentar se
lembrar da tão terrível dor que sentirá quando bem nova e surpreendendo-se ao
notar que a memória já não era tão clara.
Permitiu-se arriscar e manter o frágil
laço, prometendo que não se apegaria muito a ele.
Com o passar dos dias, viu que o laço
cada vez mais se estreitava e fortalecia, enquanto mais tempo passava
conversando com a agora não mais desconhecida. Era uma sensação boa, que
ajudava a esquecer do peso das correntes e parecia ser mais fácil se mover com
ela por perto.
Não foi simples, mas través dela
decidiu se permitir formar novos laços, bem frouxos no início, que não doeriam
demais se fossem partidos.
Antes que nota-se, diversas linhas, de
diferentes espessuras e cores, se embrenhavam entre as correntes e pareciam
reduzir o peso de cada uma delas.
Notou que agora tinha onde se segurar
para sair do emaranhado, que embora mais frouxo, ainda a prendia e atrapalhava
de se movimentar.
Não era fácil deixar o local onde
sempre se sentira segura e aprendera a ficar confortável, por vezes o incomodo
foi tanto que a fez cogitar desistir, mas se manteve firme, segurando-se aos
laços que agora se deixava criar.
Finalmente, quando se viu livre pela
primeira vez desde que se podia lembrar, gargalhou de tanta alegria. Sentia-se
tão leve, capaz de ir onde quisesse e realizar todos os seus sonhos.
Deixou para trás todas as correntes de
emoções contidas e mágoas que fazia de conta ignorar.
Por todo o seu corpo ainda existiam
as cicatrizes dos ferimentos causados pelo peso do ferro e ardia quando um novo
fio tocava neles, mas não tinha problema; Pois ela percebera que toda a dor que
viesse de um laço, era menor do que a dor de não ter nenhum.
Fim.
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