Ele
devia ter continuado a dormir.
Enquanto
se via mais uma vez cercado por soldados armados, seu único pensamento era de
que, talvez, não valesse a pena.
Durante
anos permaneceu adormecido, no interior da terra, aonde muito pouco chegava dos
problemas da superfície e seus habitantes. A maior parte da população se
convencera de que era um monstro e depois de muito tentar argumentar contra
isso, simplesmente cansara e optara por se recolher.
Quando
tornou a acordar, não sabia se havia se passado décadas, séculos ou milênios.
Às vezes pensava em erguer apenas a cabeça de leve, entreabrir os olhos e
espiar como as coisas estavam, mas desistia, sem esperança. Porém dessa vez,
eram eles que o chamavam, suas vozes se erguiam com ardor, a cima de qualquer
ruído hipnotizante que a classe dominante utilizava para mantê-lo hibernando e,
finalmente, convencendo-o de que era hora de se levantar.
Talvez
nem houvesse se passado tanto tempo, porém nunca tanta coisa acontecera tão
rápido! Seu cochilo fora o suficiente para que os mais velhos esquecessem de
sua força e para que os mais novos duvidassem de sua existência.
Neste
meio tempo, uma grossa crosta de sujeira se depositara, cobrindo-o de
ervas-daninhas e corroborando com as histórias assustadoras que criavam ao seu
respeito.
A
despeito de tudo que fizeram para mantê-lo inerte, há apenas um tanto que
qualquer um consegue aguentar antes de arrebentar. Finalmente, a população
cansou de ser subjugada e de ter seus direitos reduzidos. Na revolta, o medo
diminui. Nada como a necessidade para nos lembrar da nossa força. Então, eles
cantaram.
O
povo cantou em uma só voz, em um brado retumbante e o despertou.
Fazia
muito tempo, por isso demorou a se erguer. Seus movimentos tremeram a terra e a
poeira que subiu escureceu o céu. Ao espreguiçar, seus membros cobriram vastos
espaços públicos e a elite se aterrorizou, vendo-o mais uma vez de pé.
Os
tolos realmente acreditaram que ele jamais se reergueria, duvidaram quando ele
prometeu que seu recuar era apenas passageiro e não um ato de desistência.
Pelo
povo e com o povo ele se levantou, sonolento, mas disposto a lutar com bravura
e de peito aberto contra os soldados bem armados das classes dominantes.
Não
importavam as armas usadas, seu tamanho era intimidador e eles hesitavam em
atacá-los.
Vendo
o povo ter ainda mais um direito negado, mais um pouco de sua dignidade tirada
com escárnio, ele não hesitou a avançar, ainda que ciente de que os resquícios
de sono o fizessem cambalear e esbarrar em algumas propriedades nobres.
Aterrorizados,
os detentores do poder recuaram. Acuados ao descobrirem que seus recursos eram
pouco eficazes contra aquela força colossal, cujo, somente, a união do povo era
capaz de despertar.
Porém,
eles eram astutos e sua prioridade era fazê-lo voltar a dormir o mais rápido
possível. Traçando um plano sórdido, fingiram ceder e fazendo soar como favor a
devolução de direitos que jamais deveriam ter sido tirados.
Através
da névoa do sono, era bastante óbvio o plano traçado, mas os alertas perdiam
força, enquanto ainda lutava para manter os olhos abertos.
Anestesiados mais uma vez pelos acordes
soporíferos orquestrados pela classe dominante, o povo lentamente parava de
bradar, cada vez um número menor capaz de resistir e mais uma vez a criatura se
percebia em vias de tornar a adormecer.
Não demorou muito e a elite reforçou os
mitos sobre os males que sua existência trazia, sobre como sua presença
representava apenas destruição e ele próprio quase acreditou que não deveria
ter saído de seu leito.
Porém dessa vez tudo parecia diferente, o
pequeno levante acendera uma chama no coração do povo e era um fogo difícil de
apagar.
Sem se deixarem abalar, os detentores do
poder se reuniram e articularam meios de controlá-lo e ele, ingênuo, mal tendo
acordado direito ainda, caiu. Finalmente recobrando a maior parte de seus
sentidos, não percebeu que sua fúria era dirigida contra falsos inimigos.
Era tão difícil acordar e se deparar com
tantas batalhas a travar, quase impossível avaliar quais eram reais. Então, a
elite se valeu de sua confusão para utilizar sua força na direção contrária.
Lutara tanto e tão cegamente, mais movido
por gritos de fúria do que por brados de bravura, que ao final se viu fraco.
Machucado e ferido, jogado de lado, agora que não mais tinha serventia aos
poderosos.
Finalmente desperto, percebia como fora
tolo, dando tudo de si antes mesmo de acordar totalmente. A história de sua
vida parecia ser servir apenas como mais uma arma, manipulado de modo a atender
interesses mesquinhos, mesmo que sua real vontade fosse lutar pelas
necessidades de todos.
Ele era tão jovem, praticamente uma
criança ainda, sua mãe e seu pai o olhariam com dó, seus irmãos talvez
debochassem dele. Ou talvez todos eles estivessem em verdade sendo manipulados,
cada um por um mestre de marionetes tão hábil quanto mereciam.
Não sabia se seu despertar total era
particular ou coletivo, mas sentindo-se mais uma vez ser colocado para dormir,
urrou.
Seu urro ecoou pelo quatro cantos e ouviu
respostas dotadas do mesmo poder. Não mais se permitiria dormir, não dessa vez.
Novamente se via cercado por soldados
armados, que tinham pavor dele, a despeito de suas mãos nuas. Pobres bonecos,
tão iludidos quanto ele próprio estivera até então.
Tão desanimador o cenário, que o fazia
pensar se valia a pena lutar, mas agora, seu sono se fora.
Olhou os soldados, pensando em como
mostrar-lhes que não era o real inimigo. Não fazia sentido deixar-se ferir, mas
certamente não desejava feri-los. Portanto, simplesmente decidiu avançar.
Para sua surpresa eles recuaram! Alguns
por medo, alguns parecendo ser eles próprios despertados, do feitiço que os
controlava, pelo som de seus passos.
Era imenso! Mas não parecia tão forte com
tão poucos acreditando em sua força, ainda assim, avançou.
Quanto mais avançava, mais altos ficavam
os brados do povo. Quanto mais se movia, mais se livrava da capa de podridão
que o cobrira em seu sono e mostrava sua real e bela aparência.
Sua forma já não era tão amedrontadora,
mas sim estonteante, e no ritmo de seus passos, mais e mais pessoas se punham a
cantar.
Por fim, obteve o tranquilo conhecimento
de que não mais recuaria. Talvez ainda tivesse que lavar o rosto e beber uma
bela quantidade de café, mas ninguém poderia detê-lo agora.
O gigante acordou.
Fim.
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